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Os brasileiros que perdem corridas de transporte de aplicativos ou não recebem suas encomendas por morarem em ‘zona de risco’

Programas de influência

12 de novembro de 2021
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Esta é a primeira de uma série de reportagens sobre dinâmicas diversas de discriminação sofridas por cidadãs/ãos motivadas pelos territórios onde moram. Confira também as matérias produzidas sobre discriminação no mercado de trabalho e os problemas enfrentados por motoristas de aplicativos de mobilidade urbana

 

Por Nataly Simões

 

 

O avanço da tecnologia alcançou níveis em que é possível solicitar qualquer produto ou serviço apenas com alguns cliques no smartphone. Chamar um transporte particular ou  fazer as compras no supermercado ou em qualquer outra loja são exemplos da facilidade que esses recursos trouxeram para o nosso cotidiano. Mas não são todos os brasileiros que têm acesso a eles: a prestação desses tipos de serviço para quem vive distante de áreas centrais, em regiões consideradas ‘zonas de risco’, ainda revela um cenário de exclusão digital.

 

Uma enquete realizada pela Fundação Tide Setubal com seguidores dos canais e redes sociais identificou que 95,9% dos moradores das periferias já sofreram algum tipo de discriminação por morar onde moram. Quando questionados sobre a discriminação no uso de algum aplicativo, 83,1% dos entrevistados disseram já terem sentido esse tipo de preconceito.

 

Em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense localizado a 40 quilômetros da capital do Rio de Janeiro, onde vivem mais de 800 mil pessoas de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a dificuldade de acesso a serviços digitais, como o de pedido de transporte por aplicativo, pesa no dia a dia de quem vive em vários bairros como o da jovem Mariana Antunes, 22, uma das entrevistadas do estudo.

 

“Uber aqui só tem de manhã. À noite temos que implorar para o motorista não cancelar a corrida. É um lugar muito afastado e sem asfalto. Por mais que seja um lugar tranquilo, as pessoas sentem medo de entrar aqui. Eu mesma não costumo sair de casa de noite porque não tem como voltar”, relata a moradora do bairro Marapicu.

 

Estudante do curso de Segurança Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), Mariana recorda que, antes da pandemia de Covid-19, ela gastava sete horas no transporte público para ir e voltar da cidade do Rio, onde trabalhava como jovem aprendiz, em Botafogo, uma das regiões mais ricas da zona sul.

 

“Eu trabalhava quatro horas como jovem aprendiz e levava três horas e meia para ir e três horas e meia para voltar – isso em um dia bom. De carro, esse trajeto seria de aproximadamente duas horas”, detalha a universitária.

 

Por causa da má qualidade do transporte público na cidade e a falta de acesso a serviços prestados por empresas de pedido de transporte particular via aplicativo, os pais de Mariana recentemente conseguiram comprar um carro. A preocupação da família era, principalmente, com situações de emergência.

 

“Quando alguém passava mal de madrugada, a gente chamava algum vizinho porque ambulância do SAMU também não chega aqui. O jeito era bater no portão de quem tinha carro. Um dos motivos de a minha mãe ter comprado foi o cuidado com meu avô, de 88 anos, pois se acontecer alguma fatalidade poderia não ter quem socorrer”, explica Mariana.

 

 

 

 

 

‘Posso pagar R$ 50 de frete e mesmo assim o produto não chega’

 

O levantamento da Fundação Tide Setubal identificou também que quase metade dos casos de discriminação por CEP durante o uso de aplicativos está ligada aos serviços de delivery (41,9%) e compras online (37,2%). Outro estudo, realizado pelo Instituto Locomotiva e o Data Favela, revelou que a população das periferias movimenta R$ 119,8 bilhões por ano, no entanto, somente em 2020, 39% dos moradores de favelas compram pela internet e ao menos um terço não conseguiu receber suas compras devido ao local de moradia.

 

Não receber produtos comprados online é uma situação que a educadora Silvana Lopes*, 39, conhece de perto. Ela mora no Jardim Santana, um dos bairros com menos infraestrutura de Porto Velho, capital de Rondônia. Por lá não há tratamento de água e, segundo ela, os moradores padecem da falta de iluminação e insegurança por conta da atuação de facções criminosas.

 

“Muitos entregadores até chegam na região, mas não entram no bairro. Por muito tempo eu não conseguia nem pedir uma pizza. Vejo isso como resultado também da ausência de políticas públicas efetivas para as periferias serem vistas como parte da cidade e não segregadas”, considera Silvana*.

 

A dificuldade é a mesma da Mariana, a jovem da Baixada Fluminense (RJ).  A estudante foi a vencedora de um sorteio online do livro Continuo Preta, biografia de Sueli Carneiro escrita por Bianca Santana, pela participação na enquete desenvolvida para essa reportagem – os Correios não entregaram a obra na casa dela. “Posso pagar R$ 50 de frete e mesmo assim o produto não chega. A justificativa é de que se trata de uma área de restrição”, conta Mariana.

 

A estudante acrescenta que no bairro dela, situado em uma área rural de Nova Iguaçu, todos os moradores precisam ir até uma central dos Correios para retirar produtos comprados na internet, mesmo que paguem pela entrega. Conforme apurado pela reportagem, esse é um procedimento adotado como política da organização, que não efetua entrega em áreas consideradas de “difícil acesso” ou “de risco”.

 

 

 

 

Discriminação territorial

 

Fabiana Tock, coordenadora do Programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setubal, explica que a presença ou ausência de infraestrutura urbana em territórios periféricos retroalimenta percepções subjetivas que afetam diretamente a cobertura dos aplicativos e serviços de entregas nas periferias.

 

“A discriminação territorial tem dimensão associada ao déficit de infraestrutura nas periferias. Esse déficit é consequência da lógica concentradora de investimentos, públicos e privados, em infraestrutura em territórios já dotados desses bens. Os investimentos em infraestrutura urbana tendem a se concentrar em territórios já dotados desses bens visto a melhor resposta desses espaços em detrimento daqueles que possuem déficits significativos de equipamentos e serviços públicos”, salienta.

 

Motoristas de aplicativos de transporte particular e delivery costumam ter restrições aos bairros periféricos em função de políticas institucionais das próprias empresas onde prestam serviços. “Esse tipo de restrição, ao que parece, está menos associada ao poder de compra do morador da periferia e mais conectado à composição urbana desses espaços, como a presença de infraestruturas ou serviços urbanos que favoreçam a percepção de segurança ou condições viárias adequadas. Lembrando que os desafios de segurança e condições das vias são muitas vezes mencionados como a razão pela recusa nestes casos”, reforça Fabiana.

 

 

 

 

Democratização dos aplicativos

 

A 99, uma das maiores empresas de transporte particular, delivery e entrega, diz que 60% de todas as corridas feitas por condutores parceiros acontecem em regiões periféricas e que não aplica bloqueio definido em áreas específicas  das cidades. Segundo a companhia, as áreas definidas como de risco são classificadas a partir de dados coletados junto às Secretarias de Segurança Pública, informações internas do aplicativo e a colaboração de motoristas e entregadores parceiros.

 

“Os dados são dinâmicos e as zonas de risco podem variar – por exemplo, uma região pode ser movimentada no horário comercial, mas deserta à noite e, por isso, pode ser considerada como de risco em horários específicos”, afirma a empresa, em nota enviada para a reportagem.

 

Com a informação sobre a área de risco, o motorista ou entregador parceiro da 99 pode aceitar ou não determinada corrida ou pedido, sem qualquer tipo de penalização. A taxa de cancelamento de corridas por motoristas em zonas classificadas como de risco e em outras regiões da cidade, segundo a companhia, também possui índices semelhantes.

 

Também procurada, a Uber afirma ter a segurança como prioridade e que investe constantemente em ferramentas que atuam antes, durante e após as viagens. “Para aumentar a segurança de motoristas parceiros e usuários, nosso aplicativo pode impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos”, diz a nota da empresa.

 

“O aplicativo da Uber conta com recurso que permite que viagens aceitas sejam canceladas por motoristas parceiros quando quiserem e há a possibilidade de sinalizar motivo de segurança nas ocasiões em que não se sentirem confortáveis. No entanto, a Uber tem equipes e tecnologias próprias que revisam constantemente as viagens e os cancelamentos para identificar uso indevido ou abusivo de recursos e suspeitas de violação ao Código da Comunidade e, caso sejam comprovadas, banir as contas envolvidas”, complementa a companhia.

 

Por fim, a empresa diz não tolerar nenhuma forma de discriminação e reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o aplicativo.

 

 

* Nome fictício usado a pedido da entrevistada


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