Quando pensamos em saúde mental, falamos de direitos básicos de cidadania – Entrevista com Ana Carolina Barros Silva
Ana Carolina Barros Silva, psicanalista e coordenadora-geral da Casa de Marias, falou sobre democratizar o tratamento da saúde mental.
“Não é possível, tampouco factível, pensar em saúde pública no Brasil sem considerar aspectos como classe, gênero, raça e território.” Esta fala de Ana Carolina Barros Silva, psicanalista com duplo doutoramento em Psicologia, Linguagem e Educação pela Universidade de São Paulo e pela Université Paris VIII e coordenadora-geral da organização Casa de Marias, espaço voltado à promoção de cuidados com saúde mental para a população negra e periférica, mostra a urgência na democratização de cuidados psicanalíticos, psicológicos e psiquiátricos para grupos com esse mesmo perfil socioeconômico e racial.
Assim sendo, esse quadro, que já dava historicamente sinais preocupantes, tornou-se ainda mais profundo nos últimos anos. Para se ter uma ideia, uma pesquisa realizada com 600 pessoas moradoras de favelas no Rio de Janeiro mostrou um quadro alarmante. Assim sendo, 52% de quem participou relatou sentir ansiedade e 41%, nervosismo – ambos os casos estavam diretamente ligados à pandemia de Covid-19. Ainda, o Instituto Datafolha mostrou recentemente que três a cada dez brasileiros se sentiam com ansiedade e problemas com sono e alimentação com frequência.
Esse panorama é, então, um dos tópicos da entrevista com Ana Carolina Barros Silva. O diálogo passou pela necessidade de se valorizar e fortalecer a infraestrutura dos Centros de Referência em Atendimento Especializado em Saúde Mental (CAPS), equipamentos públicos onde são feitos atendimentos e assistência para a população que não pode pagar por serviços particulares. Essa lógica vale, como consequência, para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Outros pontos da entrevista passaram pela necessidade de se ver o acesso à saúde mental como um direito fundamental. A formação de profissionais em psicanálise foi outro tema, passando pela busca por conhecimentos feitos por e para teóricas/os com trajetória periférica e para além da perspectiva eurocêntrica. Confira a seguir.
+ O que as clínicas públicas mostram sobre o acesso aos cuidados com a saúde mental?
É possível dizer que democratizar o acesso à saúde mental para populações das periferias urbanas é uma das etapas do fortalecimento da noção de cidadania?
Ana Carolina Barros Silva: Direi que sim, com certeza. Quando pensamos em saúde de forma geral, com a saúde mental incluída, falamos de direitos básicos do ser humano e de cidadania.
Quando precarizamos ou dificultamos o acesso à saúde, especialmente à saúde pública, o sistema possível para pessoas das camadas mais populares, é essa dignidade que estamos atingindo.
Consequentemente, estamos também dificultando o acesso a um direito básico e o exercício da cidadania.
Ana Carolina Barros Silva fala sobre a terceirização e problemas no acesso à estrutura pública de cuidado com a saúde mental
Raça, gênero, território e demais variáveis de grupos minorizados são fundamentais para a dimensão da saúde mental como um direito?
Ana Carolina Barros Silva: Não é possível, tampouco factível, pensar em saúde pública no Brasil sem considerar classe, gênero, raça e território. Sem esses recortes, perdemos a dimensão da realidade e do que está colocado na vida das pessoas. Quem acessa o SUS hoje é a população mais pobre fundamentalmente. Parte de pessoas das camadas médias também acessa com a vacinação, por exemplo. Todas as pessoas têm acesso, mas a maioria que acessa a sua parte assistencial é a camada mais pobre. Sabemos que as camadas populares são compostas majoritariamente por pessoas negras, que estão nas periferias das cidades.
Algumas características nos ajudarão a entender muito bem o perfil desses usuários. Se quisermos um SUS que faça sentido para as pessoas e seja compatível com a vivência, precisamos olhar para isso. Não faz sentido desenharmos um SUS que não esteja em diálogo quem faz uso dele. O que acontece no Brasil é isso: existe uma separação muito evidente em termos econômicos e raciais, que diz quem pode acessar a saúde privada ou pagar por uma consulta particular, em termos de saúde mental. Isso é um drama profundo, complexo. A segregação das camadas populares da saúde mental é histórica, inclusive sobre o quanto foi constituída como um setor da saúde muito privilegiado, restrito e inacessível.
Idem sobre o quanto isso ganhou moldes de elemento de luxo acessível para poucos grupos endinheirados, que podiam acessar consultórios particulares e pagar por tratamentos de saúde mental. Já as camadas mais pobres e pessoas negras tinham hospitais psiquiátricos eram relegados quando não havia nada a ser feito. Não existia um projeto de tratamento e essa era a realidade dessas camadas mais populares.
Ana Carolina fala sobre a dificuldade de a população periférica e negra acessar serviços para cuidados com a saúde mental
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Qual a importância de trazer para o debate e para a formação de profissionais conceitos que fujam da perspectiva eurocêntrica e tragam novos horizontes?
Ana Carolina Barros Silva: Considero fundamental. O cenário vigente de saúde mental, ou seja, desenvolvido principalmente em consultórios privados de pessoas brancas, com condição econômica anteriormente estável, está principalmente concentrado nos centros das cidades. Idem sobre as formações: sabemos que os centros de formação estão na Vila Madalena, Pinheiros, Perdizes ou Jardins. Então, os consultórios de psicanálise também estão fundamentalmente concentrados nessa região.
Esse cenário existe porque as pessoas foram formadas com esse olhar. Na universidade, o currículo era embranquecido e eurocentrado – e ainda é. Os autores que estudamos são brancos – autores mesmo, pois a maioria é homem, europeia, branca, burguesa, que promove e produz teoria voltada para essas pessoas. O que entendemos em termos de clínica, subjetividade e saúde mental está muito baseado nesse crivo. Ou seja, tudo o que se constrói a partir dessa teoria caminha nessa direção.
Quando nos propomos a uma renovação epistemológica e a um processo de decolonização epistemológica, é disso que falamos também. No caso, sobre podermos trabalhar com teorias e produzir, nós mesmos, conhecimentos que façam sentido para a nossa realidade. Primeiro, para a nossa realidade brasileira, pois o Brasil é muito particular nesse sentido: tem história colonial, escravocrata e de hierarquização racial das relações.
Não podemos não olhar para isso quando estamos implicados em discutir subjetividade, psiquismo e saúde mental. A constituição do povo brasileiro ocorre a partir dessas questões. Por fim, quando tomamos uma teoria europeia para implantar aqui, sem nenhum tipo de cuidado, reflexão e crítica, sem nenhuma mediação e crivo, reforçamos um sistema de privilégios.
Ana Carolina Barros Silva falou sobre a necessidade de haver investimentos públicos em projetos voltados à saúde mental e ao fortalecimento do SUS
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Arquivo pessoal