Queremos representatividade em espaços de poder, pois é onde se decide o orçamento – Entrevista com Delton Aparecido Felipe
Delton Aparecido Felipe, professor da UEM, secretário executivo da ABPN e pesquisador visitante da FGV Direito SP, fala sobre participação da população negra e de demais grupos minorizados no funcionalismo público.
Equidade racial e de gênero no serviço público precisam andar lado a lado quando se fala na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Todavia, assim como ocorre em diversos espaços de poder e de decisão, a sub-representação de profissionais negras e negros em órgãos governamentais é gritante.
Segundo dados do Observatório de Pessoal, do Governo Federal, 36% do corpo de servidoras e servidores públicos correspondem a pessoas negras. Ainda, a proporção de profissionais pretas e pardas reduz conforme aumenta o nível hierárquico. De acordo com levantamento da organização República.org, menos de 15% dos cargos de Direção e Assessoramento (DAS) na escala hierárquica mais alta – DAS-6 – correspondem a pessoas negras. Ainda nesse cenário, somente 1,2% dos postos DAS-6 contam com mulheres negras.
No entanto, o cenário é menos drástico em comparação com décadas anteriores. Estima-se que 43% de profissionais que ingressaram em 2020 no serviço público correspondam a pessoas negras, enquanto essa proporção era de 17% em 2000. Tal aumento relaciona-se com a promulgação da Lei 12.990/2014, a qual prevê a reserva de 20% de vagas em concursos públicos para pessoas que se autodeclaram negras. Por meio do projeto projeto de lei (PL) 1958/21, aprovado em 2024 no Senado, essa política foi prorrogada por mais dez anos. Desta vez, a iniciativa contará com a ampliação na reserva de vagas para pessoas negras, indígenas e quilombolas para 30%.
Para falar sobre esse cenário e passos necessários para se alcançar a paridade racial e de gênero no serviço público, inclusive em espaços de liderança, a entrevista de julho é com o doutor em Educação Delton Aparecido Felipe. Delton é também professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), secretário executivo da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e pesquisador visitante da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas São Paulo (FGV Direito SP).
Confira a entrevista a seguir.
Uma dimensão na reserva de cotas raciais no serviço público é a possibilidade de haver mais verbas para políticas públicas no enfrentamento das desigualdades e direcionadas para grupos historicamente minorizados. Quais outras medidas são necessárias para a pluralidade nos perfis de pessoas refletir-se na construção de tais políticas?
Delton Aparecido Felipe: Para responder esta pergunta, primeiro é bom entender o que significam cotas ou reserva de vagas para grupos específicos no serviço público. Em geral, a reserva está dentro do que se chama de ações afirmativas. Trata-se de políticas públicas, com base na legislação, feitas para grupos específicos. Nesse sentido, por vulnerabilidade ou insegurança histórica, eles precisam que o Estado elabore estratégias para o exercício da igualdade. Logo, o objetivo da reserva de vagas, seja para mulheres ou população negra, é combater as desigualdades. Por exemplo, cotas raciais visam combater desigualdades raciais. Esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto é entender que a reserva de vagas não pode ser somente analisada a partir do acesso. Em geral, debate-se muito o acesso, mas se deve pensar a partir do seu circuito virtuoso, que consiste em acesso, permanência – material e simbólica – e sucesso. Para além de a pessoa acessar, ela precisa permanecer com condições de impactar aquele espaço e as vidas das pessoas para as quais se gera representatividade.
Espera-se, com a reserva de vagas, que pessoas de grupos minorizados tenham condições de modificar o funcionalismo público, gerando burocracia mais representativa e serviços com maior qualidade para atender à população. Para permanecerem, em sentidos material e simbólico, é necessário haver recursos e orçamento para essa política pública ter impacto.
Delton Aparecido Felipe fala sobre a necessidade da adoção de iniciativas voltadas à permanência e ascensão de pessoas negras a postos de liderança no serviço público
Existe então a consequente necessidade de sensibilizar os profissionais que já estejam no serviço público sobre esta ser uma pauta importante e urgente. É por aí?
Delton Aparecido Felipe: É por aí. Representatividade é importante, mas há risco de se cair em uma cilada caso a considere sem a dimensão do poder. Queremos representatividade também em espaços de poder e de tomada de decisão, pois são nesses espaços onde se decide qual orçamento será destinado para tal política pública, quais são os grupos prioritários, como a desenharemos e qual impacto se deseja. Esses elementos são fundamentais.
Não podemos nos esquecer também de que precisamos de pessoas negras ou mulheres. Gosto sempre de dizer que quando as pessoas discutem inovação, principalmente no serviço público, elas tendem a pensar em tecnologia e em determinados métodos. Isso tudo faz parte da inovação, mas é necessário lembrar também de que a inovação diz respeito também a pessoas com trajetórias e pessoas distintas. Isso porque elas podem operacionalizar métodos e tecnologias para melhorar a vida da população. Nesse sentido, precisa-se de pessoas em cargos administrativos, mas também em postos de secretaria, direção, ministérios, entre outras possibilidades existentes no serviço público.
Qual é a relação entre equidade de gênero e tributação sobre produtos?
Como o terceiro setor pode ser aliado na formação de lideranças negras?
Por que falar sobre transversalidade importa no enfrentamento das desigualdades?
Como iniciativas relacionadas à sensibilização e à conscientização sobre a importância de orçamentos sensíveis para gênero e raça são importantes para mostrar os impactos que os orçamentos sensíveis a gênero e raça têm na sociedade civil e para vários segmentos?
Delton Aparecido Felipe: Sempre digo que não é possível construir políticas públicas para a diversidade se não houver orçamento, pois se trata de algo fundamental para desenvolvê-las. Lastro jurídico e orçamento são fundamentais para essa política ter viés institucional. Se a instituição pensa em diversidade e não no orçamento quando organiza o seu planejamento, isso significa que não se pensou na forma de execução. Qualquer política envolve execução e condições para tal. Dessa forma, pensa-se em orçamento etiquetado especificamente para essa questão. Trata-se de um elemento importante, inclusive, para se cobrar por um específico para pautas de gênero, raça e demais marcadores sociais de diferença.
Mas o orçamento universal também precisa contribuir com essas pautas. Nesse sentido, ele não pode ficar restrito também a apenas um ministério ou secretaria: é necessário transversalizar todas as áreas do saber. Por exemplo, do que adianta haver uma secretaria de promoção da igualdade racial, mas não prever orçamento e políticas na secretaria de urbanismo, ao se pensar na população negra que mora em regiões mais afastadas? Os vários setores da gestão pública precisam estar municiados e conversar para esse tema ser transversal na gestão e não ficar em apenas uma área.
Para além disso, é necessário que a Federação trabalhe em parceria com as Unidades Federativas e municípios, pois estão na ponta da execução da política pública. Todavia, sabe-se que esse ponto ainda está frágil. Basta verificar que muitos municípios que não estão vinculados ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), além de que não há um sistema integrado. Esses municípios, por muitas vezes, não pensam em como organizar e construir o seu orçamento. Essas ações ficam à mercê da vontade da gestão ou da pressão de um determinado movimento. Como não se institucionaliza, torna-se política de governo ou de gestão. E, se não virar política de Estado, ela pode ser modificada ou não existir mais.
Um ponto que vem à tona é o senso comum sobre a construção do orçamento ser técnica e sem vieses. Como as iniciativas que você enumerou, pensando também no Sinapir e na sensibilização da importância do orçamento inclusivo, são importantes para mostrar a existência de vieses excludentes e a necessidade de mudar essa perspectiva?
Delton Aparecido Felipe: Sempre digo que a perspectiva segundo a qual o orçamento é uma peça técnica e matemática, que não tem viés político, apenas serve para manter o status quo e a desigualdade. As desigualdades de gênero e raça e o combate a elas passam por construir e viabilizar formas ou estratégias para diminuir a desigualdade entre pessoas negras e brancas e entre homens e mulheres – inclusive com interseccionalidade entre raça e gênero. Isso tudo requer investimento e atenção do Estado.
Começou-se a perceber, a partir da pressão social exercida por profissionais negras e negros em gestão pública com consciência racial que chegam a espaços de poder e de decisão, a necessidade de haver políticas públicas específicas para diminuir as desigualdades raciais da população negra. Há desde, por exemplo, iniciativas como a criação de um Procon Racial em Maceió (AL), ou até mesmo a própria execução e a reserva de vagas em municípios. Além disso, as funções nas quais pessoas negras estão abrangem, geralmente, às áreas do cuidado, educação infantil ou guardas municipais – que são os menores salários.
Como se investe para pessoas negras poderem chegar aos cargos de arquiteto ou advogado da prefeitura? Deve-se investir, por exemplo, em cursinhos preparatórios e populares para entrada em universidades públicas, ou parcerias com universidades particulares. Pensar em orçamento sensível a gênero e raça é considerar formas de execução das políticas para a promoção da igualdade e o combate ao racismo. Quando não se pensa no orçamento, a discussão fica no âmbito da boa vontade – que tem o seu limite e não é institucional.
Delton Aparecido Felipe fala sobre iniciativas voltadas à preparação de lideranças negras para o ingresso no funcionalismo público
De qual modo iniciativas como o Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades e a sensibilização de secretarias e demais órgãos públicos sobre OSGR podem ser beneficiadas pela renovação das cotas no serviço público?
Delton Aparecido Felipe: O Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades traz letramento racial e de gênero para uma área que pouco pensa tais temáticas – ou tem pensado mais ultimamente. As pessoas começam a pensar que nunca consideraram a ideia de orçamento sensível a gênero e raça, mas isso é possível. Há letramento racial ou discussão sobre racialidades sobre aquela área antes idealizada como técnica.
Os trabalhos enviados para o prêmio demonstram inúmeras estratégias elaboradas em diversas regiões do país, por diversas pessoas, que podem ser replicadas ou colaborar com a construção de políticas públicas sensíveis a gênero e raça. Um manuscrito que me impactou muito demonstrou como produtos pretensamente direcionados às mulheres têm tributação maior em comparação com itens pensados a priori para homens. Ao considerar-se que mulheres ganham menos do que homens, em especial mulheres negras, percebe-se que o modo como a tributação brasileira se organiza mantém mulheres em situação de pobreza. Chamo a atenção para mulheres negras ganharem menos do que mulheres brancas – e, geralmente, elas sofrem mais com o desemprego.
Trabalhos como esse ajudam a discutir ou fomentar debates sobre tributação. Por exemplo, outro manuscrito mostrou como o investimento do orçamento no combate à pobreza menstrual colabora com a diminuição de doenças causadas por esse problema e, consequentemente, como isso diminui o gasto na unidade de saúde. É necessário gerar visibilidade a esses tipos de projetos, pois eles podem ser replicados e chegar nos espaços de decisão. Sabe-se também que esses espaços estão, em muitas das vezes, no Congresso Nacional. Essa é uma grande jogada ou uma grande estratégia do Prêmio: o debate chega a espaços para além da universidade, inclusive pela divulgação em espaços onde pessoas que não estão na academia leem os artigos. Isso tudo ajuda muito na visibilidade sobre como construir políticas públicas a partir desses debates.
Delton Felipe explica por que a sociedade ganha se grupos minorizados influenciarem a organização e a estruturação do orçamento público
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Arquivo pessoal