Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
Mais do que poder ou empoderamento, mulheres negras se emancipam e buscam autonomia – Fundação Tide Setubal entrevista Rosane Borges
Por Gislene Ramos* / Foto: Arquivo pessoal Muitas foram as conquistas do povo negro ao longo dos anos, a exemplo do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Celebrada em 25 de julho, a data reivindica e convoca para as especificidades de demandas e subjetividades das mulheres negras. E nesse processo, da […]
Por Gislene Ramos* / Foto: Arquivo pessoal
Muitas foram as conquistas do povo negro ao longo dos anos, a exemplo do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Celebrada em 25 de julho, a data reivindica e convoca para as especificidades de demandas e subjetividades das mulheres negras. E nesse processo, da base da pirâmide, elas seguem disputando narrativas e buscando a emancipação.
Mas as relações de poder e visibilidade, sobretudo nos espaços midiáticos, a todo momento são expostas por meio de problematizações no que se refere à representação e ao imaginário, sobretudo da população negra brasileira. Nesse sentido, refletir sobre mídia, representatividade e espaços de poder é desafiador e complexo.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, a jornalista e doutora em Ciências da Comunicação Rosane Borges comentou, sob a ótica da criticidade e no lugar de mulher negra, a respeito do atual momento midiático, em meio a representações das mulheres negras.
Como você analisa o atual cenário no que diz respeito às mulheres negras e à presença midiática entre visualidade, representatividade e espaços de poder? E o que é, então, a visibilidade?
No Brasil, temos o racismo e o patriarcado, que são considerados pela ONU dois eixos extremos de diferenciação negativa e isso significa dizer que a cada dois passos de conquistas, temos dez de retrocesso. Mas isso não é porque não estamos fazendo nada. Estamos fazendo muita coisa. Acontece que o patriarcado, o racismo e o sexismo são – como está sendo bastante falado agora, mas já se falava há muito tempo – estruturantes. Então, em um cenário com formas de opressão e discriminação como essas, parece que tudo o que conseguimos é pouco, mas não é tão pouco em relação ao esforço.
Em relação às mulheres negras, por um lado continuamos na base da pirâmide social, somos os maiores alvos de feminicídio e sofremos mais violência obstétrica; mas, por outro lado, temos mulheres na educação superior, elas se formam mais, estão estudando mais, ingressando mais no mestrado e doutorado, etc. Então, temos de um lado a via da destituição e do racismo, mas, por outro, a reação dessas mulheres tentando outros lugares possíveis. Mais do que poder e empoderamento, é uma emancipação. São mulheres negras que, das margens, se emancipam e buscam autonomia.
O que temos de pensar nesse conjunto de reivindicações é que não podemos achar que a nossa presença imagética seja suficiente. A reivindicação por imagem é importante, mas, às vezes, achamos que estar presente nas redes sociais, tendo milhares de curtidas e afins, é poder. Isso não é o poder e ainda não é a visibilidade. A visibilidade significa quando a minha visualidade, ou seja, minha presença imagética, se converte em algo que possa conferir à humanidade um reconhecimento. O poder é quando sou visível e essa visibilidade representa um conjunto que diz respeito a tudo o que chamamos de humano, comum da humanidade.
Em que medida a visualidade pode ser o caminho para a visibilidade e contribuir para a construção de um novo imaginário sobre o corpo negro?
A visualidade é um caminho pelo fato de contribuir para um repositório, como um banco de imagens de pessoas negras, mas acho que só será o caminho que nos levará à visibilidade quando tensionar o próprio imaginário. Porque, como diz bell hooks, não basta apenas construirmos imagens positivas sobre nós, mulheres advogadas, acadêmicas, etc.: é preciso que junto a essas imagens positivas, elas sejam capazes de construir um outro imaginário. E o que é esse outro imaginário? Esse grande repositório de imagens que vai decantando. Seria como alguém olhar para uma pessoa negra e não saber mais o que ela é, pois ela pode ser uma advogada, uma médica, etc.
Mas, quando olham para nós mulheres e homens negros e nos aprisionam em imagens significa, dizer que o racismo opera pela visualidade do outro, pela visibilidade que temos do outro. Daí, como disputamos outro lugar para nós? Pensando em imagens positivas, mas conferindo a essas imagens, uma possibilidade delas disputarem com as imagens estereotipantes, com as imagens de controle, como diz Patricia Hill Collins, como a empregada, a mãe preta, a preta velha, a mulata do samba, entre outras. Então, para as visualidades serem dispositivos importante, é preciso que elas criem essa potência de serem realmente um repositório de imagens sobre nós, imagens múltiplas, de outros tantos lugares.
Nesse processo de construir um “repositório de imagens”, em que medida a representatividade é importante, mas ao mesmo tempo pode ser uma armadilha?
Acho que a representatividade é armadilha quando a reivindicamos, porque acredito que temos que reivindicar pelos sistemas midiáticos. Quando só reivindicamos estar neles, sem transformá-los, o que acontece? É preciso a gente estar no Jornal Nacional como apresentadoras? Sim, é preciso. Mas é preciso que, ao mesmo tempo, venha junto a transformação do próprio sistema. Do contrário, o que o sistema faz? “Olha, já tem uma apresentadora negra. Não é preciso mais mudar”. Por isso precisamos transformar o que chamamos de jornalismo, o sistema de mídia, mas temos que entrar nele como ele é. Então, o problema da armadilha da representatividade é que ela fica, às vezes, em uma reivindicação de só querer o acesso a esses sistemas e só querer estar ali sem querer mudar as estruturas. Precisamos reivindicar o acesso à nossa participação no mundo pela imagem, por outros registros; mas também precisamos transformar esses próprios regimes. É acesso e transformação, ao mesmo tempo! Do contrário fica uma pauta só capitalista e consumista de querer puramente participar.
Quando você diz “transformar as estruturas” dentro desses espaços, sobretudo midiático, como é possível esse movimento?
Ter pessoas que concebam os programas, que roteirizem, mas não pode ser quaisquer pessoas. É preciso negros e negras com consciência racial, como diz bell hooks, “os que carreguem os símbolos da negritude”. Porque, se não tivermos pessoas que pensem de forma diferente, teremos uma gramática de produção engessada. Então, se entrarmos e não mudarmos a gramática de produção, não vai mudar muita coisa, iremos colocar um corpo negro que terá de corresponder a uma estética já dada.
Muniz Sodré já dizia, na década de 1970, que o negro que entrava no sistema televisivo brasileiro era um negro que se deixava morrer, porque de certa forma tinha de mudar o cabelo para ficar mais baixo, etc. E até hoje Heraldo Pereira, quando vai apresentar o Jornal Nacional, [os maquiadores] colocam quilos de maquiagem no rosto dele e gel no cabelo. Isso significa que precisamos mudar uma certa noção de estética, de cor e de iluminação. Para mudar é preciso questionar, inclusive, as normas técnicas, profissionais, mudar toda a estrutura, o que diz o q ue pode e o que não pode, o que é normal, o que é desviante, o que é belo ou feio, certo ou errado. É preciso mudar as regras técnicas, pois são desculpas para a perpetuação do racismo no campo da produção de imagens.
Quando falamos em branquitude e privilégios, uma das práticas do momento nas mídias digitais é o chamado “abrir mão do privilégio e ceder o espaço”, em que pessoas não-negras abrem seus perfis nas redes para pessoas negras produzirem conteúdo. É possível romper com privilégios dessa forma?
É um posicionamento complicado, pois até entendo a boa vontade. Mas você não abre mão provisoriamente do privilégio, você só abre mão do privilégio de fato quando você tensiona as estruturas e não é uma questão apenas de ceder. Então acho que, às vezes, ficou uma moda muito de “ah, eu cedo meu espaço”. É tentador, pois às vezes nesse movimento a pessoa dona da conta ganha ainda mais seguidores. Mas tenho uma observação quanto a isso: não condeno quem faz, mas é que de fato ninguém está abrindo mão dos seus privilégios. Pelo contrário: acho que reforça o privilégio do homem branco quando diz “estou cedendo o meu espaço temporariamente para esta mulher negra”. Até em que ponto estamos dialogando com esse público, se não são mais pontos para o branco desconstruído do que efetivamente para uma mudança nas relações sociais, na balança assimétrica? Acho, em princípio, que todas as formas de favorecer mulheres negras são válidas, mas não é uma prática que serve para quebrar privilégios. Pelo contrário.
Nos últimos tempos surgiram muitos perfis, canais, sites, podcasts e produções em diversas linguagens de pessoas negras. Como você analisa esse cenário? Poderíamos chamar o momento de “aquilombamento midiático”?
Aquilombar-se é para resistir. Então, acho que a noção de aquilombamento só tem sentido se fizermos desse aquilombamento midiático uma forma de resistência para que de fato nossa voz possa ser ouvida e possamos construir e disputar outras narrativas. Acho que tem muita gente fazendo coisas muito legais, que por meio do eu está pensando no coletivo. Vozes marginais e silenciadas, que estão tentando, pelas narrativas, construir outros horizontes.
Sob esse ponto de vista, as mídias, as redes sociais, elas têm um papel fundamental quando as tomamos como realmente um espaço alternativo, e não um espaço de cooptação. Não um espaço que nos tornemos celebridade. Podemos até nos tornar referência, mas acho que se tornar celebridade é o perigo, pois aí você já foi cooptado pelo capitalismo, e não tem mais controle do que você diz e nem do que você é, do ponto de vista da projeção pública. Acho que esse aquilombamento midiático é fundamental, pois você está na rede e na mídia, reivindicando visibilidade, mas a partir de outros critérios.
O mês de julho é um período de muita visualidade para mulheres negras por causa do dia 25. O que refletir e qual é o olhar crítico sobre este momento?
Acho que é um momento importante, pois nós, mulheres negras, criamos uma data que é muito nossa. O 8 de março também é nosso, porque nos alinhamos ao Dia Internacional da Mulher, estamos com passeatas, etc. Mas quando dizemos Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, recuperamos a trajetória das escravizadas, enquanto o 8 de março recupera a memória de mulheres que eram espoliadas pelo capitalismo, que foram queimadas. Mas o mês de julho diz que há uma história anterior também de exploração, das escravizadas. Então, acho que o dia 25 tem o papel de anteceder a luta de todas as mulheres, dizer que já haviam antecedências e, ao fazer isso, potencializa outras lutas dos movimentos sociais. E, assim, carregamos a possibilidade da renovação da luta social. É um mês que, mesmo na pandemia, ganha uma importância muito grande para pensarmos o país, a cidade, educação, cultura, tudo. E é uma vitória histórica das mulheres negras, pois entrou no calendário nacional, e com muita força, em todas as regiões do país.
* Gislene Ramos é jornalista pela Universidade Federal da Bahia, idealizadora do FalaPreta e colaboradora da newsletter Sitiada. Especializada em Cultura, Educação e Relações Étnico-raciais pela ECA-USP e Membro do Comitê de Antirracismo, Equidade e Inclusão Racial Accenture Brasil.