Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
O primeiro passo para combater o fundamentalismo é legitimar a atuação do campo progressista religioso – Entrevista com Gut Simon
Gut Simon, comunicador, estrategista de advocacy e idealizador do livro "Semente de Vida", fala da obra e do campo evangélico progressista.
É necessário colocar diversidade e religião na mesma mesa de diálogo. Para se ter uma ideia, um levantamento feito em 2020 pelo Datafolha identificou que 81% da população brasileira é cristã – 50% declara-se católica e 31%, evangélica. Ou seja: todo e qualquer projeto de fortalecimento do tecido democrático passa pela religiosidade.
É nesse contexto em que o livro Semente de Vida: Rejeição e Aceitação de Filhos/as/es LGBTI+ em Lares Cristãos vem à tona. A obra tem como objetivo compreender como as angústias de pais, mães e pessoas cuidadoras cristãs de filhas e filhos dissidentes, impulsionadas pelo discurso religioso tradicional, podem resultar em conflito e violência. O projeto, que conta também com a websérie Ciclo de Conversas Semente de Vida: Alianças Progressistas LGBTI+ Contra o Discurso Religioso Fundamentalista, composta por quatro episódios derivados de diálogos que ocorreram no evento de lançamento da obra, almeja buscar caminhos para interromper o ciclo da rejeição às diversidades sexual e de gênero e agir em favor da propagação da vida.
Essa lógica torna-se ainda mais urgente quando se fala em conter perspectivas reacionárias e fundamentalistas. Os frequentes ataques contra a união entre casais homoafetivos como entidade familiar, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, são didáticos. Em 10 de outubro, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Tal retrocesso passará por análises nas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).
Para falar sobre o projeto, caminhos possíveis em favor da diversidade e o trabalho do campo progressista religioso nesse contexto, assim como o enfrentamento à narrativa reacionária, entrevistamos Gut Simon. Comunicador social, estrategista de advocacy e mobilização, idealizador e coautor do livro, Simon fala também sobre o papel do ISP para apoiar iniciativas que tenham como objetivo propor narrativas em favor da pluralidade e do direito de ser e existir. Confira o diálogo.
O que pode ser dito sobre o processo de desenvolvimento do Semente de Vida? Como as famílias e as iniciativas foram selecionadas?
Gut Simon: O desenvolvimento do livro começou em 2018. Esse período de investigação foi essencial para estabelecer o caráter coletivo preponderante à obra, com várias vozes reunidas para contar histórias tão delicadas de dor e esperança. O estudo seria uma pesquisa de cenário, feito de forma corajosa e cuidadosa, sobre o fenômeno da rejeição, exclusão e violência contra crianças e jovens LGBTI+ de famílias cristãs. Mas os relatos de pais, mães e pessoas cuidadoras, filhos/as/es LGBTI+ e especialistas da saúde mental, teologia, comunicação, ciências políticas e estudos de família e comunidade foram tão fundamentais para compreender o Brasil de hoje. Por isso, resolvemos publicar as nossas descobertas com um público mais amplo.
Esse Brasil tem na origem do ciclo de exclusão e violência às diversidades sexuais e de gênero o discurso fundamentalista religioso. A criação de “verdades bíblicas”, que desconsideram o que a ciência e marcos regulatórios de direitos humanos dizem sobre o tema, permeia a confusão de pais, mães e pessoas cuidadoras cristãs ao se depararem com a nova identidade de gênero e/ou orientação sexual do filho/a/e. O choque e negação da revelação, somados ao silenciamento e solidão desses cuidadores, geram sensações de abandono e distanciamento familiar, culpa e sentimento de falha. Assim como medo da violência e insegurança, vergonha, constrangimento e desconforto, decepção, mágoa, depressão, raiva e culminam em agressividade, rejeição e violência.
Da mesma forma, um discurso político fundamentalista usa a violência como dispositivo aprovado e “abençoado” por Deus. Vivemos um estado de emergência no qual tais discursos ganham visibilidade e força dentro das casas legislativas do Brasil e do mundo. Esse mecanismo sutil de interpretação e manipulação de discurso chega à era de algoritmos, polarização e colapso material e imaterial nos quais somos utilizados por uma extrema-direita bem articulada e financiada. O livro questiona o uso político de imagem de Deus pautado no tripé pátria, família e propriedade. Esse discurso tem causado o rompimento familiar que conservadores e fundamentalistas tanto abominam. Mas a obra também encontra, nas práticas de resistência de diferentes atores do campo progressista religioso, possibilidades de reconciliação da fé com a sexualidade. Para eles, olhar a natureza humana como reflexo da imagem de Deus na Terra é assumir que a melhor expressão da Sua imagem é a diversidade.
Nesse sentido, é estratégica a ocupação, por meio do diálogo, de segmentos considerados conservadores e refratários a pautas progressistas, como na esfera religiosa? Como é o o processo para mostrar que se trata de um grupo plural e com várias perspectivas?
Gut Simon: É preciso compreender que ser fundamentalista religioso é diferente de ser conservador. A compreensão da diversidade de visões componentes de um espectro político é complexa. São muitas as categorias possíveis para essa compreensão, como econômica, identitária, classe etc. Quase sempre esse exercício nos joga para uma visão binária, polarizada e simplista de esquerda ou direita, progressista ou conservadora, reformista ou tradicionalista ou religiosa ou científica. Falta letramento religioso para o campo progressista, do qual faço parte – por isso a autocrítica. Há desconhecimento de quem são as pessoas cristãs no Brasil. Isso é gravíssimo, pois coloca todo mundo no mesmo balaio. Para a historiografia contemporânea, conforme afirma Marion Brepohl, que foi professora de um dos coautores do livro, o Pastor Bob L. Botelho, um dos fracassos do exercício da história foi desconsiderar a religião como categoria fundamental na análise das questões da sociedade.
Assim sendo, regimes autoritários, como o nazismo, foram regimes também teológicos, forjados na interpretação de textos bíblicos e suas relações com a vida cotidiana. Enquanto a categoria religião for considerada individual e não for analisada coletivamente, abriremos margem para cenários fundamentalistas e autoritários emergirem. Católicos e evangélicos são os dois maiores grupos em termos populacionais no Brasil. Mas nem todo mundo professa do mesmo Cristo, muito menos de leitura fundamentalista. Nesse sentido, podemos dizer que os ensinamentos de um cristianismo colonial, patriarcal e hegemônico estão entranhados na cultura do nosso país. Mas hoje já vemos disparidades significativas, sobretudo dentro do universo evangélico que, diferente da Igreja Católica, não está subordinado a uma única instituição.
Não há um cristianismo: há cristianismos. Da mesma forma como o discurso fundamentalista religioso toma o Congresso Nacional com violência descabida, o discurso ético religioso toma as ruas com disposição à união. Refiro-me a um campo progressista religioso em crescimento que exalta um cristianismo de outro Cristo. No caso, quem se inclina para ouvir as dores das pessoas, se compadece de todo o sofrimento e celebra a vida. Esse Cristo caminha nas periferias e não se aprisiona por limites da tradição, pois está sempre se atualizando e sendo atualizado nas diversas experiências de amor. Desse modo, é urgente disputar o sentido de Deus por meio do diálogo, se desejamos impedir que famílias conservadoras religiosas sejam aliciadas por ideias fundamentalistas e caminhem para o extremo do espectro político. Desse modo, é preciso construir narrativas que dialoguem com a perspectiva da fé, baseadas em produção teológica séria, ética e decolonial.
Um ponto, que dialoga com um diagnóstico da pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais, diz respeito à linguagem. Por mais que termos conceituais sejam caros a grupos minorizados, é pertinente evitar o uso deles para dialogar com grupos conservadores com os quais há possíveis pontes para diálogos?
Gut Simon: O livro não é uma obra feita para dialogar com pessoas conservadoras. É um convite para o campo progressista fazer alianças com o campo progressista religioso e explorar, juntos, outros caminhos e narrativas para construir essa aproximação.
De forma alguma falamos de abrir mão dos nossos princípios ou da defesa de nossos direitos fundamentais. A reflexão é sobre a importância de enxergar o outro por inteiro para permitir esse diálogo ao menos ter início. A partir desse exercício empático poderemos escolher melhor signos, palavras e imagens que levaremos para essas conversas. Idem para evitar despertar “gatilhos” que derrubem a possibilidade de escuta.
Sendo assim, a linguagem é uma escolha estratégica e postura pessoal diante do diálogo. O diálogo pode ser mais do que um lugar ao qual vamos para afirmar nossas crenças. O verdadeiro vai além de apenas pessoas falarem umas com as outras. Ou seja, ele acontece quando cada uma das partes é capaz de observar a si mesmo e ao outro. A mudança só pode vir se essas duas partes se moverem juntas.
Gut Simon fala sobre a importância de evitar perspectiva condescendente e prepotente no diálogo sobre religião e diversidade sexual
Com base no diagnóstico resultante do livro Semente de Vida, como o campo do ISP pode auxiliar iniciativas que propõem contranarrativas contra grupos fundamentalistas e, como consequência, para apoiar causas de grupos minorizados e dissidentes?
Gut Simon: O primeiro passo, que vale para o ISP e demais organizações do terceiro setor, mídia e todo o campo progressista interessado na defesa dos direitos humanos e no combate às desigualdades, é legitimar a existência e a atuação do campo progressista religioso. Até pouco tempo atrás, financiadores excluíam projetos do campo progressista religioso da sua lista de grantees por serem religiosos. Isso só mudou agora, quando passaram a financiar alguns desses grupos, ainda em perspectiva utilitarista de “conquista do voto evangélico”. Ou seja, dialogar com camadas conservadoras religiosas continua sendo para grande parte da esquerda como “tocar gado”. O pouco investimento que chega pensando em promover o diálogo com religiosos vem para levar uma “grande verdade”. Ou seja, para pessoas “ignorantes”, em postura egocentrada e paternalista. Essa tática é própria do fundamentalismo, o qual quer impor a sua leitura de mundo, levando luz a quem está na escuridão.
Gut Simon fala sobre a necessidade de se evitar a perspectiva utilitarista no diálogo sobre religião e diversidade
Para nós, é urgente investir recursos em organizações e coletivos cristãos progressistas atuantes nos territórios, no dia a dia, conversando com essas famílias. Isso para compreender quem elas são, oferecendo cuidado e escuta sem juízo, e fazendo frente à enorme influência que o pastor tem sobre suas decisões. Por fim, existe acúmulo muito grande por parte desse grupo, em termos de linguagem, conhecimento do território e “lugar de fala”, que pode favorecer o avanço de diversas agendas progressistas. Isso sem contar as dimensões da fé e da espiritualidade: quem não tem não compreende a força. Enfim, ela é capaz de mover montanhas.
+ Gut Simon fala a respeito de cuidados no diálogo sobre a pauta LGBTQIAPN+
Confira a série Ciclo de Conversas Semente de Vida: Alianças Progressistas LGBTI+ Contra o Discurso Religioso Fundamentalista, derivada do livro Semente de Vida
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: André Chacon