Um dos reflexos da crise de credibilidade de instituições públicas perante a população é a redução da importância da construção coletiva em âmbito social. Essa lógica, inclusive, dialoga com a oferta reduzida ou quase nula de oportunidades para a população das periferias, em particular as juventudes.
Para se ter uma ideia, segundo estudo realizado em 2022, 75% de jovens no Brasil almejavam tornar-se influenciadoras e influenciadores. Nesse sentido, levantamentos como este mostram que a falta de oportunidades de trabalho nas periferias, cujos efeitos se observam na incidência de jovens que trabalham por meio de aplicativos de mobilidade ou de entrega, culmina no pensamento e na prática em âmbito imediatista.
Um exemplo nesse contexto abrange as apostas online. Em que pesem os efeitos dramáticos e extremos em âmbitos econômico e sociocomportamental, segundo levantamento de 2024, 35% de pessoas – cerca de 1,4 milhão – interessadas em iniciar uma graduação abriram mão desse objetivo por direcionarem o valor necessário para tal em sites de aposta e cassinos online.
Desse modo, em virtude do imediatismo e da urgência de solucionar as urgências da vida – ainda que por caminhos contraintuitivos e nocivos -, o processo para conscientizar as juventudes sobre a importância da construção coletiva passa a apresentar cada vez mais desafios.
“A população começa a criar uma subjetividade de resolução de seus problemas no aqui e agora e isso tem desdobramentos perigosos. Primeiro, em apostas nas bets, pois elas estão desesperadas para dar uma solução imediata para o seu problema. Tem coisa mais imediata do que uma loteria, que é um golpe da sorte? A loteria é um golpe da sorte, mas às vezes é um golpe em quem aposta”, comenta Tiaraju Pablo D’Andrea. Tiaraju é professor do Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP).
O papel do funk
Outro campo de disputa quando se fala na importância da construção coletiva e do protagonismo das juventudes abrange o campo cultural. Nesse sentido, o funk tem papel de destaque nesse contexto, assim como na esfera econômica. De acordo com levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV), somente no Rio de Janeiro, o gênero musical e projetos relativos a ele resultam em lucro anual estimado em R$ 127 milhões.
Além disso, o alcance de artistas e produtoras de funk, cujos artistas desse segmento têm alcance diário na casa de milhões no YouTube e movimentam centenas de milhões de reais por meio de parcerias com gravadoras, mostra a influência social cada vez maior e notória do gênero. Logo, trata-se também de uma cadeia produtiva e de um caminho profissional vislumbrado por jovens com origem periférica.
Contudo, seja com o funk ou demais gêneros musicais, independente do contexto ou origem, alguns efeitos colaterais podem representar barreiras para conscientizar as juventudes sobre a importância da construção coletiva, inclusive em âmbito político. Vide a crescente e contínua ode à ascensão individual e à ostentação.
“A ostentação é muito danosa para a periferia e é um falso empoderamento. Na verdade, é a maior prova da nossa derrota. Quando o ser humano precisa de uma mercadoria para provar que é alguma coisa e essa é a maior submissão ao sistema que pode haver. Mas, infelizmente, em uma sociedade que não consegue prover direitos e futuro para a população, ela se refugia nisso para fazer algum tipo de demarcação pessoal, seja no bairro ou para os familiares”, reforça Tiaraju Pablo D’Andrea.
Por uma batida (socialmente) envolvente
Ao tratar-se de um campo sociocultural em disputa, há risco de atributos e discursos inerentes ao funk passarem por cooptação de grupos sociais que pregam, no fim das contas, a exclusão de valores coletivos e solidários do tecido social. Idem o esvaziamento do papel do Estado como garantidor da promoção de bem-estar social e de valores pautados pela dignidade da pessoa humana.
“Da parte das pessoas que fazem e consomem funk, algumas embarcam nessa ideologia, enquanto outras não. Tem muita gente do mundo do funk quem considera que o gênero deve ter relação com a comunidade e ter compromisso social. Logo, o mundo do funk está sendo disputado: não se pode dizer que existe só um discurso hegemônico.” Essa é a abordagem proposta pelo professor do Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP).
Tiaraju aponta também para outro aspecto nesse contexto: o fato de que a juventude ligada ao funk – substantivamente negra e periférica – é a mais perseguida, criminalizada e reprimida de todos os setores da juventude. E será, desse modo, a primeira a sofrer repressão em cenários nos quais candidatos que pregam o endurecimento da atuação estatal na Segurança Pública. Ainda assim, contraditoriamente, tais setores tentam cooptar o discurso do funk, caso sejam bem-sucedidos em seus objetivos. “Há, então, um paradoxo. Enquanto os grandes produtores apoiam candidatos com esse viés, eles serão, quando ou se ganharem as eleições, os que mais irão reprimir a juventude do funk.”
Por fim, os caminhos possíveis para conscientizar as juventudes sobre a importância da construção coletiva passam, inclusive ao considerar-se o papel do funk, pela oferta de oportunidades e de serviços em nível plenamente satisfatório para atender à população. Tais aspectos são, enfim, fundamentais para a valorização do bem comum. “Precisamos avançar em um projeto de sociedade que pregue a solidariedade, direitos e oportunidades iguais para todas as pessoas. Esse é um pacto social, que, no momento atual, precisa de políticas públicas”, completa Tiaraju Pablo D’Andrea.
Texto: Amauri Eugênio Jr. / Foto: @NappyStock