“Quando a gente vê uma pessoa negra ocupando um cargo de prestígio social, mil possibilidades se abrem na nossa cabeça” – Fundação Tide Setubal entrevista Júlia Rocha
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: reprodução/Facebook Apesar de todo e qualquer cidadão ter direito ao exercício da profissão desejada, sem distinção de raça, gênero, orientação sexual, origem socioeconômica e demais variáveis, o senso comum induz a opinião pública a considerar que determinadas atividades são de exclusividade de determinado grupo e inacessíveis a outros. De […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: reprodução/Facebook
Apesar de todo e qualquer cidadão ter direito ao exercício da profissão desejada, sem distinção de raça, gênero, orientação sexual, origem socioeconômica e demais variáveis, o senso comum induz a opinião pública a considerar que determinadas atividades são de exclusividade de determinado grupo e inacessíveis a outros.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 39,08% de mulheres negras e 31,6% de homens brancos estão submetidos a condições precárias de trabalho – essa proporção é de 26,9% para mulheres brancas e de 20,6% para homens brancos.
Por outro lado, postos de decisão e de poder têm predominância de pessoas brancas em detrimento de profissionais negros, mesmo que esse grupo seja maioria na composição étnico-racial no Brasil. Segundo a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2018, feita pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na qual foram entrevistados 4.601 médicas e médicos recém-formados entre 16.323 graduados de 2014 a 2015, apenas 1,8% declararam-se negros e 16,2%, pardos – para efeito de comparação, 77,2% dos entrevistados autodeclararam-se brancos.
Tamanha predominância induz a disseminação do lugar-comum no qual determinadas pessoas têm “cara de médico” e outras, por motivos sociorraciais, não. Isso explica o fato de, por exemplo, uma foto de uma turma de médicos negros recém-formados na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) ter viralizado.
Em virtude da Semana da Consciência Negra, a Fundação Tide Setubal produziu entrevistas com figuras de universos distintos para falar sobre enfrentamento ao racismo estrutural. Dentro do contexto médico, a entrevistada é Júlia Rocha, profissional que se autodefine como “especialista em gente, médica de família e comunidade”, e que aborda aspectos relacionados à humanização da saúde e equidade em sua coluna no portal UOL, para retratar como disparidades entre raça e gênero e condição são retroalimentadas pela estrutura desigual na sociedade, assim como esses fatores afetam o trabalho de profissionais negros e a relação entre médicos e pacientes.
Confira a entrevista a seguir.
A área médica é marcada pela baixa presença de pessoas negras. Em sua opinião, como o racismo estrutural retroalimenta a lógica social elitista na medicina?
O racismo estrutural nega o acesso à educação básica de qualidade, deteriora as condições financeiras da família e impede jovens negros e negras de conseguirem cursar a graduação de medicina – é um curso difícil, que exige dedicação quase exclusiva. O resultado é esse que vemos: quando encontramos uma médica negra, celebramos como se tivéssemos achado uma agulha no palheiro.
Ao não se verem representados, os nossos jovens não sonham e não se imaginam nesta profissão, o que é cruel. Isso traz uma consequência perversa, que é uma relação hierarquizada entre médicos e pacientes no consultório. O paciente pobre, preto e favelado não se sente sequer no direito de perguntar e de questionar aquela figura quase santificada, tão distante da sua realidade.
O que você pode falar a respeito da sua vivência na área médica? Como você procura enfrentar o viés racial existente na área?
Eu tenho a pele muito clara. No Brasil, eu sou muitas vezes lida como branca. O que ocorre é que muitas vezes o racismo não é direcionado a mim, mas aos meus pacientes. Aí, eu viro onça. Já recebi ofensas racistas, sim, de outros médicos, mas isso chega em mim de uma forma muito mais branda do que para outras colegas médicas de pele retinta.
Ainda neste contexto, como você analisa a baixa presença de pessoas negras em espaços de decisão e de poder na sociedade?
É parte do racismo estrutural que nega acesso e que ceifa sonhos e potencialidades. Só consigo acreditar na nossa organização social como saída para isto. Quando chegamos com nossas vivências e nossas lutas, trazemos o nosso povo para influenciar as decisões políticas.
Você acredita que o seu trabalho e a sua postura ajudam a influenciar crianças e jovens negros a acreditarem que eles podem também cursar medicina e trabalhar na área? Por quais motivos?
Eu acredito e recebo esse tipo de retorno sempre [por parte de] jovens negros que se inspiram na minha caminhada. Quando a gente vê uma pessoa negra ocupando um cargo de prestígio social, mil possibilidades se abrem na nossa cabeça.
Como as presenças de mais médicos negros ajudarão a tornar a área médica mais democrática e, como consequência, menos elitizada? Por quais motivos?
A relação médico-paciente pressupõe um vínculo plano, não hierarquizado. Quando o meu paciente olha para mim como uma igual, ele se dá valor – e essa representatividade é terapêutica! Agora, nós precisamos nos organizar para muita luta, já que as políticas de reparação histórica, como as cotas, estão sendo frequentemente atacadas.
Para você, o que é necessário ser feito para a consciência negra ser levada em consideração durante o ano inteiro em vez de acontecer exclusivamente em novembro?
A branquitude precisa ser questionada sobre seus privilégios e é necessário haver organização social para isso. A luta é essencialmente política, sem personificar ou individualizar o debate – e o movimento negro faz isso com sabedoria. Estamos caminhando, apesar dos tempos bicudos.