Certa vez, ao receber um grupo de visitantes que trocava experiências e ideias sobre o viver em comunidade, no Complexo da Maré, os temas violência, drogas e tráfico apareceram no debate. Jaílson Souza e Silva, criador do Observatório de Favelas, perguntou: quantos por cento de moradores da Maré vocês acham que podem estar envolvidos com o crime? Um dos visitantes respondeu: 20%. Jailson, então, fez um cálculo rápido: “temos 140 mil moradores na Maré. Por esse percentual, 28 mil pessoas estariam diretamente ligadas ao crime. Esse número é superior à população carcerária carioca”. Surpreso com o cálculo e com o pouco conhecimento sobre essa realidade local, o visitante ainda disse timidamente, “e eu falei 20% porque fiquei com vergonha. Pensei em um número maior.”
Esse episódio exemplifica marcas comuns na imagem das periferias. Uma visão recheada de estigmas, que sempre destaca carências, e coloca esses espaços em um lugar inferior dentro da dinâmica da cidade. Construir uma visão convergente a partir do debate entre organizações, movimentos, coletivos foi o objetivo do Seminário Internacional O que é periferia, afinal, e qual o seu lugar na Cidade?
Iniciativa do Instituto Maria e João Aleixo, Observatório de Favelas e Redes da Maré, com patrocínio da Fundação Tide Setubal e Fundação Itáu Social, o encontro, realizado entre os dias 15 e 17 de março, reuniu 100 pessoas de organizações e universidades de 15 países, entre eles, Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte) Estados Unidos, México, Colômbia, Cabo Verde, Guiné Bissau, Portugal, Inglaterra, Itália e Índia. Na comitiva de São Paulo, representantes da Fundação Tide Setubal, do movimento Hip Hop Mulher, do Historiorama, Doc Capão, Irmagem, Sesc, entre outros.
De forma conjunta e a partir de um documento inicial, formulado em um encontro nacional, os participantes redigiram A Carta da Maré, Rio de Janeiro – Manifesto das Periferias: as periferias e seu lugar na cidade. “Esse documento não é reivindicatório, estamos disputando um conceito”, destaca Jailson Souza e Silva, diretor executivo do Instituto Maria e João Aleixo. Nesse sentido, a carta defende que: “a definição de periferia não deve ser construída em torno do que ela não tem em relação ao modelo dominante na dinâmica socioterritorial ou da distância física em relação ao centro. Ela deve ser reconhecida pelo conjunto das práticas cotidianas que materializam uma organização genuína do tecido social inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território”.
A construção do conceito por meio de outra narrativa fortalece uma nova concepção simbólica do que é periferia. E o simbólico também marca presença na concepção de políticas públicas e investimentos sociais privados. Vale destacar que o grupo debateu amplamente a não romantização de sua realidade, e a importância de não eliminar os problemas presentes em seu contexto.
Além da carta manifesto, nasce com o encontro a Internacional das Periferias, uma rede que pretende contribuir com a construção acadêmica sobre diferentes temáticas acerca da realidade periférica. Formada por mais de 20 países, a rede realizará cursos, vivência, intercâmbios e residências para a produção de conhecimento. “Queremos atuar de forma coletiva na produção de novos conteúdos e na formação de novos quadros, ampliando a nossa potência também no universo acadêmico.”
Nesse movimento, o grupo quer influenciar a formulação de políticas públicas adequadas e conectadas com as demandas das periferias. ““O debate sobre o lugar da periferia na cidade se alinha à nova missão da Fundação que pretende olhar para as desigualdades sócio-espaciais e de como podemos superá-las. Há dez anos atuamos na zona leste de São Paulo sob a perspectiva de que o território importa para a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e para o desenvolvimento social. O seminário foi muito impactante por reiterar o quanto ainda temos que caminhar para que todos usufruam plenamente do seu direto à cidade”, destaca Paula Galeano, superintendente da Fundação Tide Setubal.
Verissimo Junior, criador do Teatro Laje, citou o poema Tecendo uma manhã, de João Cabral de Melo Neto para expressar como percebeu o encontro. “Encontrei ecos e cantos de outros cantos por aqui. Foi preciso uma iniciativa assim para a gente continuar tecendo junto novos cantos.”