Por Amauri Eugênio Jr. Foto: Nappy / pexels.com
Desde crianças somos treinados para acreditar que existem atividades exclusivas para homens e outras que apenas mulheres devem realizar. Esses conceitos são reforçados com o passar do tempo a ponto de se tornarem inquestionáveis e, com isso, surgir o senso comum sobre quais são as atividades exercidas por homens e por mulheres. E isso tem consequências negativas, que foram colocadas em perspectiva nesta matéria, feita em celebração ao Mês Internacional da Mulher.
Basta dizer que a diferença salarial entre homens e mulheres é significativa mesmo quando ambos têm o mesmo nível educacional: de acordo com estudo feito pelo Instituto Locomotiva, homens brancos ganham R$ 6.702 e homens negros, R$ 4.810. Já mulheres brancas têm rendimento médio de R$ 3.981 e mulheres negras, R$ 2.918. Vamos a outro exemplo? Levemos em consideração a divisão de tarefas domésticas: enquanto elas gastam 21,3 horas semanais em média com afazeres domésticos, eles dedicam 10,9 horas na realização dessas mesmas atividades – ou seja, quase metade do tempo.
Pensar de modo isolado na desigualdade entre gêneros existente no mercado de trabalho, na realização de tarefas domésticas e criação dos filhos, ou nos alarmantes indicadores de violência contra a mulher é uma medida equivocada. Todos esses cenários estão interligados entre si e têm a mesma raiz: o modo como a sociedade está estruturada em relação aos papéis que deverão ser desempenhados por ambos.
De acordo com Patrícia de Almeida Kruger, pesquisadora de pós-doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), é necessário levar em consideração a necessidade de haver mudança estrutural na sociedade para ser possível pensar em equidade. “É necessário pensar como surge a hierarquia entre gêneros para se pensar o que é o feminismo, assim como entender o contexto histórico sobre como isso é formado com a valorização de tudo o que é [entendido como] masculino e desvalorização de tudo o que é feminino.”
Como o determinismo de papéis sociais de gêneros resulta na opressão masculina sobre mulheres, é necessário destruir esses padrões comportamentais para haver transformação social. “Ao ter em mente que o ideal do masculino é uma criação, que nenhum homem é determinado biologicamente a ter esses atributos e mulheres idem, fica muito mais fácil dizer que se está reproduzindo uma estrutura que consiste em uma criação [social]”, pondera Kruger. Ela enfatiza também a necessidade de homens terem consciência sobre os seus respectivos papéis e poderes transformadores, uma vez que é difícil ser a pessoa que não segue os padrões de gêneros socialmente impostos. “Você deve estar muito ciente do seu papel transformador na sociedade. Uma vez ciente disso, você terá [o poder] formação para intervir nesse tipo de situação”, descreve, sobre situações em que mulheres são depreciadas.
Desconstruir ou derrubar para reconstruir?
Um dos assuntos recorrentes quando se fala na luta pela equidade entre gêneros é a desconstrução da masculinidade tóxica, ou seja, características ligadas ao padrão de masculinidade que pressupõe a superioridade de homens em relação às mulheres. Apesar de essa lógica estar relacionada ao entendimento de que o machismo é consequência de estrutura social ligada a essa suposta superioridade.
Um exemplo deste cenário é o trabalho de cuidado não remunerado – também conhecido como trabalho doméstico. Segundo o relatório Tempo de Cuidar, da Oxfam, o valor monetário global desse tipo de atividade é de US$ 10,8 trilhões anuais.
Enquanto os homens ainda podem escolher não realizar tais tarefas, se as mulheres não quisessem – ou pudessem – se responsabilizar por tais atividades, elas se viam obrigadas a contratar mulheres em situação socioeconômica precarizada para, literalmente, colocar a casa em ordem. “Precisamos repensar esses ideais e por que a sociedade exige que tudo o que é relacionado ao cuidado, esteja no âmbito feminino. [Por isso] é muito mais fácil convencer mulheres a serem donas de casa”, destaca Kruger.
Deste modo, o que está em jogo quando se fala em mudar padrões de gêneros vai além de simples mudanças. “Isso não se trata de um processo de desconstrução, mas de destruição, pois não há o que salvar na violência do homem contra a mulher e nos processos de controle e de poder de pessoas dentro da sociedade. Esse é um processo em que a gente precisa destruir e modificar totalmente”, pontua Tulio Custódio, sociólogo, sócio e curador de conhecimento na Inesplorato.
É importante também deixar de lado a perspectiva individualista para entender o contexto coletivo na luta pela igualdade entre gêneros, uma vez que se trata de uma estrutura social. Um dos motivos para isso é a responsabilidade que a falta de senso coletivo tem na reprodução da desigualdade e de modalidades diversas de opressões.
Não basta ser pai: tem de dar o exemplo
Foi citado neste texto que os papéis de gêneros são resultados de construção social – parafraseando a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), não se nasce mulher, torna-se. Sendo assim, o modo como as crianças são criadas é determinante para a reprodução de tais signos e é possível dizer que os pais têm papel determinante sobre quais tipos de adultos as suas filhas e seus filhos se tornarão.
“[A criação] é de fundamental importância. Sabemos que a família é o principal núcleo da sociedade, onde você reproduzirá todas as lógicas sociais. No núcleo familiar, se você tem uma transformação desse nível, você consegue alcançar coisas muito importantes”, ressalta Patrícia de Almeida Kruger. Ainda de acordo com a pesquisadora de pós-doutorado da FFLCH, o nível de consciência dos pais tem papel estratégico no modo como os filhos passarão a assimilar o mundo.
Todavia, ainda que o nível de consciência que os pais têm sobre o tema seja um dos fatores mais importantes para a construção do pensamento crítico e a reflexão sobre estereótipos de gêneros sobre os filhos, a influência de demais instituições, como escola e igreja, poderá impactar na reprodução de tais estigmas. Sendo assim, qual pode ser outra saída possível?
“Acho que [esse processo acontece] no dia a dia, por meio da prática e de atitudes. Por exemplo, quando um homem faz tarefas domésticas e o filho vê, ele terá outra visão sobre essa atividade e não achará que a mulher é a responsável”, destaca Flávio Urra, sociólogo, mestre em psicologia social e coordenador do E Agora, José? Pelo Fim da Violência Contra a Mulher, projeto socioeducativo que desenvolve trabalho com homens autores de violência doméstica contra as mulheres em Santo André (SP).
Como ir do discurso à ação?
Para reconstruir padrões de gêneros e torná-los socialmente iguais é necessário agir, mas a maneira como colocar iniciativas em prática ainda gera dúvidas. Mesmo que exemplos pessoais sejam importantes para haver de fato transformação, individualizar iniciativas pode ter como efeitos colaterais a perda do foco na questão estrutural do problema, além de tratar a estrutura machista de modo simplista.
Ainda assim, algumas medidas adotadas pelos homens podem ser válidas. Por exemplo, deixar de falar sobre algo que não sentem na pele é uma iniciativa válida. Mais do que isso: “[É necessário] ouvir o que as mulheres falam e consumir o que elas produzem. Os homens querem entrar no debate, pautá-lo e sequer se dão ao trabalho mínimo de entender, ler e conhecer o que essas mulheres estão produzindo e fazendo. Esse é o diagnóstico sobre a questão inicial de como eles podem contribuir para o debate de gêneros sem quererem ser protagonistas”, ressalta Custódio.
Assim como ouvir o que as mulheres têm a dizer, colocar o machismo estrutural em perspectiva durante atividades em grupo é importante para os homens perceberem os erros que cometeram, quais são as raízes para eles terem visão de mundo na qual homens são superiores e como mudar esse cenário.
No caso do E Agora, José?, um dos modos de atuação consistem em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres com o Tribunal de Justiça – Comarca de Santo André e a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania da Secretaria Estadual da Administração Penitenciária, por meio da qual condenados ao cumprimento de pena alternativa pela Lei Maria da Penha devem participar de 26 encontros. “É um processo longo, pois a gente acredita que eles só mudam por meio de processo longo e sistemático – que não é possível fazer mudanças em um encontro ou palestra”, detalha Urra.
Após dois encontros individuais, os participantes entram em atividades coletivas, quando são abordados aspectos diversos sobre o machismo, como violência contra a mulher, divisão de tarefas domésticas e demais aspectos do que se entende por masculinidade tóxica – que servem como pontos de partida para reflexão. Engana-se quem pensa que casos de violência doméstica estejam condicionados a classes socioeconômicas: o projeto teve pessoas condenadas de contextos diversos, como advogados, pessoas com formação acadêmica ou analfabetas, e com histórico de dependência alcoólica ou química: “Independentemente da idade, classe social ou renda, todos eram iguais sobre o machismo.”
Outra modalidade consiste no curso de formação de gênero e masculinidades, que é realizado por meio de parcerias com prefeituras, Ministério Público e empresas: a metodologia é semelhante à usada no E Agora, José?, mas conta também com a aplicação de textos teóricos.
Para além de medidas socioeducativas, é fundamental que os homens reconheçam os privilégios obtidos por meio da construção social de gêneros que os beneficiou e subjugou mulheres. “Defendo que a gente tem uma dívida histórica com as mulheres”, completa Flávio Urra. Chegou a hora de pagar por essa dívida.
Para aprofundar-se no tema
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