As cenas de agressões direcionadas por senadores contra Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, durante audiência realizada no Senado, não foram aleatórias, tampouco fruto de enfrentamento político – em hipótese nenhuma legítimo face às sucessivas tentativas de silenciamento e ridicularização. Mais do que isso: a raiz disso tudo tem relação para lá de intensa com o afastamento das parlamentares Áurea Carolina e Manuela d’Ávila da vida política. Isso sem contar o exemplo extremo, que consiste no atentado político que vitimou Marielle Franco, em 2018.
A raiz desses e outros episódios com o mesmo teor é a violência política de gênero. Trata-se, de modo geral, de toda ação direcionada a mulheres que objetivem impedi-la de atuar politicamente, assim como restringir os seus direitos nessa esfera. Esse é o ponto central da entrevista com Laura Astrolabio, advogada especialista em direito público pela Universidade Cândido Mendes e mestre de políticas públicas em direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Laura, que é também pesquisadora e consultora sobre gênero, raça, política e democracia, ativista pelos direitos humanos, cofundadora e codiretora executiva da organização A Tenda das Candidatas e autora do livro Vencer na Vida como Ideologia: meritocracia, heroísmo e ações afirmativas, fala sobre esses aspectos com base na realidade. Ainda que a participação política de pessoas negras e de mulheres tenha aumentado nos últimos anos, a sub-representação é ainda gritante. Para se ter uma ideia, foram eleitos, em 2022, os maiores números de mulheres – 91 deputadas federais – e de pessoas autodeclaradas negras – 135 parlamentares. No entanto, tais indicadores passam longe da paridade racial e de gênero.
A entrevista com Laura Astrolábio passou também por, entre outros tópicos, fatores socialmente estruturais e como o ISP pode apoiar ações para combater a violência política de gênero. Confira a seguir o diálogo.
Laura Astrolabio: O conceito de violência política de gênero e raça está previsto no parágrafo único do artigo 3º da Lei 14.192/2021. Segundo o parágrafo único, “constituem igualmente atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo.” Trata-se de qualquer ação para restringir ou criar obstáculo para impedir mulheres de exercer seus direitos políticos. Quero chamar atenção para o trecho que destaca “em virtude do sexo”, pois isso consiste em biologizar a lei quando se trata de gênero. Ela traz a questão racial no artigo 2°, segundo o qual serão garantidos os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.
Os movimentos de mulheres entendem que a inclusão da palavra “sexo” exclui mulheres trans. Trata-se de uma lei feita sem observar a situação específica das mulheres trans – “mulher” não é uma categoria universal. Quando se fala de mulher, pensa-se em uma mulher branca, cis, hétero, mas somos diversas. Precisamos parar de usar esse termo, pois se trata de uma construção social. Isso implica também no fato de que, a depender de quem a interpretár, pode não alcançar uma mulher trans no exercício dos direitos políticos. É muito importante alterar essa lei. Por exemplo, estamos no meio de um encaminhamento no Senado do Projeto de Lei 112/2021, em tramitação desde 2021, para alterar o código eleitoral. Esse PLP visa entrar na questão da sub-representação política de gênero e raça. Há ataques às conquistas das mulheres quanto aos seus direitos políticos, como a reserva de 30% de candidaturas. O novo código eleitoral quer tirar esse percentual para colocar 20% de reserva de cadeiras.
Muita gente pensará que se trata de algo bom por ser reserva de cadeiras, mas não é o caso. A reivindicação dos movimentos de mulheres na luta por paridade de gênero e raça na política é de 50% de reserva de cadeiras, mas há muitas coisas envolvidas, sobretudo quanto à fiscalização. Quando assistimos ao debate no Senado, percebem-se muitos homens falando que a reserva é de 20% – mas mulheres precisam ser eleitas. Adota-se, então, um discurso como se as pessoas não votassem em mulheres por não gostarem de fazê-lo – sendo algo essencialista. Mas não é verdade. Pesquisas mostram que, quando perguntadas se votariam em mulheres e o porquê, as pessoas respondem que acreditam no fato de elas darem mais atenção para educação e saúde. Trata-se de serviços em que a população mais se interessa em acessar e precisam ter melhor qualidade. Talvez a política seja tão nefasta no Brasil em virtude da ausência da construção para o cuidado, pois a maioria que a ocupa é homem.
Laura Astrolabio: Três coisas se retroalimentam: divisão sexual e racial do trabalho, violência política de gênero e raça e sub-representação de mulheres na política, sobretudo negras. Quanto à divisão sexual e racial do trabalho, as mulheres ocupam os cargos mais subalternizados nas empresas. E as mulheres negras, mais ainda, ganham salários menores, trabalham mais e moram em locais distantes do que se entende como centro. Além de perder horas no deslocamento, elas ainda precisam pagar passagem cara, pois há desconto salarial dependendo do quanto ganha, mesmo que recebam vale-transporte. Precisamos entender que a divisão sexual e racial do trabalho afasta mulheres de diversos lugares – não só da política.
É importante falar disso, pois quando a pessoa é um ativista sindical, ela recebe licença do trabalho. – se não tiver, não consegue lutar por direitos trabalhistas. Como uma mulher lutará para ter condições de igualdade na política, paridade ou direitos reprodutivos, se não puder sequer descansar? Entramos também na questão da diminuição da carga horária de trabalho: as pessoas pensam nessa dimensão apenas no sentido do descanso. Mas como as pessoas podem se organizar para lutar por direitos se mal conseguem descansar do trabalho que sustentam suas vidas? Por exemplo, uma mulher empregada doméstica que quer se candidatar a vereadora terá de continuar a fazer faxinas durante a campanha. Isso porque o partido não tem como prioridade que ela receba verba de maneira igual aos homens para campanhas eleitorais. A faxineira ganhará R$ 10 mil ou R$ 20 mil, por exemplo, para fazer uma campanha por três meses, e o homem receberá R$ 1 milhão.
Sabe-se da existência do fenômeno chamado solidão da mulher negra, que precisa também ser debatido quando se fala de mulheres na política e sub-representação. Esse conceito não abrange apenas não ter um parceiro afetivo sexual: é não ter pai ou irmãos – e ter uma família fragmentada e ser sozinha. Às vezes, uma mãe solo ainda precisa cuidar do filho, pois não tem ninguém para ajudá-la. Como ela se candidatará a um cargo? Por outro lado, quem são os homens na política? Eles são casados. Eles sairão para fazer campanha e as esposas cuidarão da casa e ajustarão tudo para nenhuma conta ficar sem pagar e os filhos estarem na escola.
Laura Astrolabio: A minha observação geral é: quando alguém não tem acúmulo sobre algum tema, o que ele fará é desmerecê-lo. Por exemplo, se abrir um diálogo com Áurea Carolina e falar de raça ou meio ambiente, fenômenos extremamente importantes que precisam de debates com muita seriedade, em um espaço com maioria de homens brancos sem nenhum letramento racial, ambiental e em sustentabilidade e direito ao futuro, e uma mulher negra chegar com todo esse conteúdo para falar disso, ela será atacada. Isso porque eles não sabem debater a respeito. Se levar a pauta de gênero para debate, eles também a atacarão. Eles querem que os debates continuem a ser sobre temas nos quais têm acúmulo e elegem como sendo a raia política.
Um exemplo é sobre economia, de maneira solta, como se não tivesse a ver com raça e gênero. Por exemplo, Sueli Carneiro já falou que classe tem cor e gênero no Brasil. Se classe tem a ver com economia, condição financeira e poder de compra, e se classe tem gênero e cor, não se pode falar em economia sem trazer a questão racial e de gênero para o debate. Mas para fazê-lo é preciso ter letramento de gênero e raça – essas pessoas não querem ter. Essas são categorias de estudo muito difíceis, pois têm várias ramificações. Nós, que somos pessoas negras, temos facilidade, pois vivenciamos. As pessoas que não vivenciam e são racistas – e sexistas, no caso dos homens – não querem, obviamente, trazer isso.
Quando se fala de gênero e raça na política, tiramos os homens brancos de um lugar confortável. Lélia Gonzalez, por exemplo, já falava disso. Inclusive, A Tenda das Candidatas foi criada, pelo menos da minha parte, ao pensar no legado dela, pois era uma mulher sensacional, tentou se candidatar e foi boicotada por partidos – o que ainda acontece. Será que, naquela época, se existisse uma organização com esse objetivo, ela teria desistido ou se tornado presidente da República? Se houvesse à época outras organizações que protegem mulheres que sofrem violência política de gênero e raça e não permitam que elas desistam, por esse ser um grande desafio? O sistema coloca dificuldades para a chegada de mulheres e expulsa quem chega, como fizeram com Áurea e Manuela d’Ávila. Precisamos pensar sempre em políticas necessárias para mantermos mulheres nesses lugares para elas poderem puxar outras e, por meio do exemplo de atuação delas, sonhar em ocupá-lo.
Laura Astrolabio: Há OSCs que atuam principalmente pelos direitos políticos das mulheres, sobretudo no combate à sub-representação política, em particular de mulheres negras. É fundamental atuar pelos direitos políticos delas pois não há democracia forte quando não se respeita essa premissa. A sub-representação política de mulheres é um fato e enfraquece muito a nossa democracia. As pessoas precisam estar onde saem decisões que impactam suas vidas. A sub-representação é uma das causas da violência política de gênero e racial.
Uma questão muito importante para debater também é sobre a coação eleitoral, um crime que pode acontecer inclusive fora do período eleitoral [N.R.: coação eleitoral consiste em crime previsto no artigo 301 do Código Eleitoral e acontece com o uso de violência ou grave ameaça para forçar alguém ou um grupo de pessoas a votar – ou não votar – em determinado candidato ou partido]. Isso atinge mulheres, sobretudo negras, de maneira mais violenta, mas alcança todas as pessoas, inclusive homens brancos. É necessário combatê-la e somente o TST [Tribunal Superior do Trabalho] tem falado sobre o tema, mas trazendo o para o assédio moral, sendo que é um crime que precisa ser fiscalizado. O Ministério Público precisa fiscalizar, pois interfere de maneira profunda no resultado das eleições no Brasil.
Enquanto a coação eleitoral acontecer da maneira como ocorre e com subnotificação no estado atual – e sem fiscalização -, nunca saberemos se o resultado das eleições é o espelho do que a sociedade quer ou se foi vítima de um crime para obter-se aquele resultado. Não há pesquisas sobre coação eleitoral. A Tenda tentou fazer uma pesquisa, mas para ser quantitativa e com muitas pessoas falando a respeito disso, exige aporte financeiro importante. Os resultados, com o pouco que conseguimos captar de informações, causou grande preocupação. Se estiver preocupado com a democracia no Brasil, o campo da filantropia precisa pensar na questão dos direitos políticos. E, principalmente, nos direitos políticos de mulheres e pessoas negras.
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.
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