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“É necessário haver pessoas negras nos espaços de poder para demonstrarem o quanto o racismo nos afeta, adoece, mata e limita” – Fundação Tide Setubal entrevista Marcelo Carvalho

Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: arquivo pessoal

 
 
Por muito tempo, o senso comum fez a população brasileira acreditar que o futebol era um dos símbolos do mito da democracia racial. Afinal, torcedores eram condicionados a acreditar no pressuposto de que todos os jogadores em campo eram iguais, independentemente da origem sociorracial.
 
Apesar deste lugar-comum, a verdade é que existem diferenças raciais, sim. Nos últimos anos, episódios de atos racistas contra atletas e juízes têm se tornado mais veementes e vêm recebendo muito mais atenção por parte de torcedores, atletas e da imprensa. Outro ponto a ser levado em consideração diz respeito à quantidade de técnicos negros no Brasil: há apenas três na Série A do Campeonato Brasileiro. Roger Machado, treinador do Bahia, Marcão, do Fluminense, e Dyego Coelho, que recentemente assumiu de modo interino o comando do Corinthians, são exceções em meio à predominância de comandantes brancos. Andrade, técnico campeão brasileiro pelo Flamengo em 2009, foi o único treinador negro a conquistar um título na elite do futebol nacional, mas teve ínfimas oportunidades desde então justamente pela questão racial.
 
Em virtude da Semana da Consciência Negra, a Fundação Tide Setubal entrevistou Marcelo Carvalho, diretor-executivo e criador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Carvalho abordou aspectos como o racismo estrutural no esporte e maneiras para enfrentá-lo, a lenda urbana da democracia racial, além da importância de se falar sobre consciência negra durante o ano inteiro.
 
Confira a entrevista a seguir.
 
 
Apesar de a quantidade de jogadores negros, a presença de treinadores negros é ínfima. Em sua opinião, como a lógica de que atletas negros são bons executores, mas não têm capacidade para liderar e gerir equipes, é retroalimentada pelo racismo estrutural?
 
Não tenho dúvidas de que a falta de negros em cargos de comando é retroalimentada pelo racismo estrutural. Com a quantidade de [ex-atletas] negros, por que eles não estão nesses cargos? A desculpa da falta de qualificação não serve, pois existem vários treinadores que não fizeram nenhum tipo de curso de qualificação para estar ali. Outro detalhe, mais atual, tem a ver com o racismo: os cursos que hoje em dia são obrigatórios para treinadores são muito caros, o que também impossibilita a grande parcela da população negra de estar nesses cursos e, como consequência, estar em cargos de treinadores.
 
 
O que te motivou a criar o Observatório? Como a sua vivência está correlacionada com a atividade da organização?
 
O que me motivou a criar o Observatório foram os sucessivos casos de racismo com [o ex-árbitro] Márcio Chagas da Silva, Tinga e Arouca no início de 2014. A imagem que eu tinha era do futebol brasileiro como espaço democrático. Não o único, mas um dos poucos espaços de oportunidades para crianças negras e pobres – o futebol tinha a questão da oportunidade -, mas sempre acreditamos na tal democracia racial que existia no futebol. Então, quando esses casos [aconteceram], a pesquisa foi no sentido de entender a quantidade de casos que ocorriam no futebol brasileiro e o que acontecia com os casos de racismo, mas, principalmente, tentar utilizar o futebol como instrumento para chamar a atenção da população brasileira sobre o racismo.
 
O futebol tem um espaço muito grande dentro dos veículos de comunicação e por ser o esporte número 1 do brasileiro, tem entrada em praticamente em todos os lares do Brasil – assistem-se a programas esportivos e de futebol, e a [partidas de] futebol. Isso nos daria, como está dando, uma oportunidade de falar sobre racismo por meio do futebol.
 
 
Episódios de racismo têm recebido maior repercussão e acontecido com mais frequência no Brasil e, em especial, na Europa. Como esse aspecto está, em sua opinião, correlacionado com o racismo estrutural? E o que a postura das confederações e entidades regulatórias, como a Fifa, diz sobre o enfrentamento ao racismo?
 
Um dos motivos para os episódios de racismo acontecerem com maior frequência no Brasil e fora do Brasil dizem respeito ao crescimento dos movimentos de extrema-direita, em que muitos dos seus líderes externam preconceitos e discriminação. Isso faz uma grande parcela de população a encorajar o seu preconceito. Na Europa, o que mais preocupa é que a parcela de extremistas, nazistas e fascistas estão usando o futebol como palco e divulgar os seus grupos. Isso é muito preocupante, pois essa onda pode chegar ao Brasil, principalmente de crescimento desses grupos. Vi uma notícia sobre o Brasil ter identificado 334 células neonazistas em todo o país, que tendem a crescer, e podem começar a usar o futebol para divulgar a sua existência. A questão da postura da FIFA e das federações, o que falta para essas entidades é cumprir o que elas externam e determinam em seus regulamentos. A FIFA escreveu um novo código disciplinar, que é muito bom, mas na prática não é reproduzido o que está no papel. A omissão das entidades faz os casos de racismo aumentarem, pois os racistas estão percebendo que não existe punição – e quando há, é muito branda.
 
 
Roger Machado, técnico do Bahia, considera-se um ativista dentro do esporte por falar sobre a questão racial. Por que o enfrentamento ao racismo é visto como ativismo político dentro do esporte, enquanto manifestações racistas são vistas como atos de provocação em campo?
 
A questão do ativismo está muito ligada à questão política, pois política consiste em relações de busca de poder, de oportunidades e de debates, e o futebol nunca encarou isso como deveria. Por isso, talvez ele se declare como ativista dentro do esporte porque é a questão do enfrentamento, de colocar a cara e o cargo em risco, a partir do momento em que você se posiciona – ser membro de um grupo minoritário e lutar por elas, pois futebol e política sempre se misturaram no Brasil. Quem sempre usou o futebol politicamente foi a classe dominante, para propagar os seus projetos de governo e eleger pessoas que utilizaram o futebol como palco. A questão de Roger de ser ativista é estar contra a maré e, por isso, acho que ele é ativista dentro dessa questão.
 
Manifestações racistas são vistas como atos de provocação pela sociedade racista, pois para nós, negros, que sofremos com racismo no dia a dia, isso é crime e não tem nada a ver com atos de provocação ou tentar desestabilizar os torcedores. Para uma sociedade que sempre terá justificativa do racismo, talvez essa seja mais uma.
 
 
 
Roger Machado (à esquerda) e Marcão, técnico do Fluminense (à direita), com camisetas do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, durante partida entre as equipes comandadas por eles (Thiago Ribeiro/AGIF)
 
 
Quais avanços você considera terem acontecido na abordagem da questão racial no futebol? E o que é necessário ser feito para haver ainda mais avanços?
 
Os principais avanços são as participações de alguns clubes, principalmente o Bahia, que vêm se manifestando não só na questão racial, mas em outras questões e outros preconceitos e discriminação, e provocando outros clubes a se manifestarem. O trabalho que o Observatório vem fazendo tem feito a justiça desportiva repensar a sua ação – ou falta de -, e a gente vem escancarando que os casos vêm aumentando e que falta ação das entidades. Talvez isso seja um avanço.
 
O avanço passa também pela maior punição aos casos. A gente precisa também trabalhar a educação e conscientização, mas neste momento, é necessário punir – somente a punição irá inibir os racistas. Em paralelo, é necessário trabalhar [sobre a] educação e conscientização neste momento, mas não existe paralelo neste momento – exige posição firme, pulso firme e punição.
 
 
Como você analisa a baixa presença de pessoas negras em espaços de decisão e de poder na sociedade?
 
Analiso a baixa presença de pessoas negras [em espaços de decisão e poder] pelo racismo estrutural e institucional. Além da qualificação, há o olhar de quem escolhe pessoas para determinados cargos. Quando não são apenas provas, existe alguém que faça recrutamento e seleção, esse olhar ainda é racista, que não consegue compreender, aceitar ou desejar pessoas negras em cargos de comando. Elas ficam sempre em dúvida se querem uma pessoa negra representando a sua empresa e entidade. E isso faz parte do racismo, pois ainda se acredita que pessoas negras não são qualificadas ou não deveriam estar em determinadas funções. Isso ainda faz parte do racismo nosso de cada dia, que sempre desqualifica as pessoas negras. 
 
 
Como as presenças de mais profissionais negros ajudarão a tornar o futebol mais democrática em âmbito racial? Por quais motivos?
 
As presenças de profissionais negros, não só no futebol, trará diversidade. Quando a gente começa a trabalhar com diversidade, a gente começa a trabalhar com diversas opiniões e a compreender o quanto o mundo é múltiplo e quanto cada diferença pode fazer o mundo ser compreendido como ele é. Ao permanecer ter um olhar branco e hétero no mundo, a gente continuará a ver o mundo distorcido. É necessário haver pessoas negras nos espaços de poder e de decisão para elas demonstrarem para outras pessoas o quanto o racismo nos afeta, adoece, mata e limita. [Por] não haver pessoas negras nesses espaços, as pessoas não têm essa compreensão. Todo o mundo sabe e repete que racismo é crime, mas, de fato, qual é o mal que o racismo causa? Qual é o mal que o racismo traz para uma sociedade que tem desigualdade racial muito grande. Isso só será melhor discutido quando houver negros em cargos de comando e discutindo tomadas de decisão.
 
 
Para você, o que é necessário ser feito para a consciência negra ser levada em consideração durante o ano inteiro em vez de acontecer exclusivamente em novembro?
 
A sociedade sabe que há um problema racial, mas é algo que precisa ser um problema institucional. [É necessário] que o Brasil se reconheça racista e portador dessa doença para pensar na cura, pois não existe cura se o paciente não se reconhecer como portador dela. O Brasil precisa reconhecer-se como um país criado, embasado e fortificado sobre uma estrutura escravagista, que repete, de certa forma, as posições onde negros e brancos podem estar e onde o negro pode chegar. Ainda acredita-se que a falta de negros em determinados espaços é por falta de qualificação, por ainda se acreditar na falácia da democracia racial. É impossível no país onde haja comparações entre uma criança não janta e toma café, que precise andar 20 km para ir à escola, com outra que vai de carro para a escola sem se preocupar se terá ou não almoço, jantar e roupas.
 
Precisamos quebrar a falácia da meritocracia, pois a gente não está no mesmo ponto de partida. [Usa-se] a história de que é necessário lutar para chegar: chegar onde e de qual maneira? A gente precisa pensar nisso: depois que chegar e qualificar, só isso basta? Se eu me qualifiquei e cheguei, mas preciso sempre provar que sou bom – suas vezes melhor – para estar ali, será que isso não nos adoece e nos mata? É necessário sempre provar isso?
 
Discutir a consciência negra o ano inteiro é [falar sobre] a falta de negros em determinados espaços e planos de ações afirmativas em empresas públicas e privadas. É muito difícil, de novo, eu, Marcelo Carvalho, acreditar que o Brasil, mesmo sabendo ter uma sociedade extremamente racista e criada em cima de um sistema escravagista, não se encare e não se reconheça racista.
 
Quando a gente diz que está vivendo em uma sociedade racista, a gente não está apontando o dedo para todas as pessoas, mas para um problema institucional e estrutural, e para quem é racista. Quem não é racista não deveria se doer, mas as pessoas não aceitam a autocrítica e não querem ir participar do debate e entender o que de fato acontece com pessoas negras nessa sociedade extremamente racista.

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