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É necessário eleger pessoas que sejam das periferias e pensem sobre cidade de maneira transversal – Entrevista com Gelson Henrique
Gelson Henrique, diretor executivo da Iniciativa Pipa, sociólogo e mestre em Políticas Públicas pela UERJ, fala de direito à cidade.
Vamos propor um exercício de reflexão. Você consegue se locomover com facilidade de um lugar a outro dentro da cidade onde você mora, incluindo a região central? Qual é a qualidade dos equipamentos de Educação e Saúde no seu bairro? Você se vê como algo de discriminação, entre outros motivos, por causa da sua raça, etnia ou identidade de gênero?
As perguntas acima têm relação direta com o conceito de direito à cidade. Criado pelo filósofo Henri Lefèbvre, essa teoria traz consigo premissa segundo a qual o direito à cidade é um direito humano e coletivo. E, nesse caso, não diz respeito exclusivamente a fatores infraestruturais.
Ou seja, todas as pessoas que vivem em um determinado espaço devem deslocar-se, habitar, trabalhar e ter acesso ao lazer e a serviços de Saúde. E o poder público deve implementar medidas e ações para assegurar tais direitos. Com isso, fatores como raça, gênero, identidade de gênero e classe social não podem, enfim, representar barreiras para se ter o direito à cidade em sua plenitude.
As dimensões que compõem o debate sobre o direito à cidade norteiam a entrevista de agosto da Fundação Tide Setubal. Desta vez, o diálogo é com Gelson Henrique, pai de Amina, diretor executivo da Iniciativa Pipa, sociólogo e mestre em Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Desse modo, o diálogo passou por fatores como desigualdade sociorracial e territorial, racismo ambiental e eleições.
Confira a entrevista a seguir.
Como o debate sobre direito à cidade coloca a desigualdade racial como um tema central, inclusive para propor políticas públicas e urbanísticas?
Gelson Henrique: Ao falar da organização das cidades, muito se escuta e se diz sobre infraestrutura, processo, políticas públicas de mobilidade urbana, saneamento básico e tudo o mais. De fato, esses são os grandes aspectos essenciais de infraestrutura. É importante considerar como essas políticas citadinas são pensadas e elaboradas a partir de viés racial com marcador de raça e classe.
Quando se fala sobre ineficiência da política de transporte ou coisas do tipo, é importante pensar em áreas e espaços específicos. Isso vale também para quem sofre com uma política de transporte ineficiente e eficaz – e, enfim, saber-se que isso afetará pessoas negras das periferias. Assim sendo, isso resulta em uma organização citadina de maneira organizada, enquanto projeto, para ser ineficiente para a população negra.
Quando se analisam as políticas públicas, seja qual for a temática – infraestrutura, mobilidade urbana, saúde, assistência social ou de qualquer aspecto constituinte da cidade -, os marcadores de raça e classe estão colocados para não funcionar para essa população. Isso faz com que políticas sejam ineficazes ao, inclusive, colocar catracas nas vidas dessas pessoas.
Sua dissertação mostra que os corpos negros são criminalizados nas áreas centrais e aceitos apenas como mão de obra. Como o debate sobre direito à cidade mostra a organização do espaço urbano retroalimentando essa lógica?
Gelson Henrique: O racismo construído na sociedade, que tem como um dos seus artefatos a cultura do medo, faz as pessoas entenderem, então, corpos negros em espaços elitizados como algo que foge à regra. Isso causa estranhamento e induz diferentes violências em relação a esses mesmos corpos – sejam elas simbólicas ou físicas. Mas nenhuma violência racial que acontece com a população negra é “sutil”. Muito se fala sobre a “sutileza” das violências – um olhar ou uma pergunta, que transmitem nas entrelinhas a mensagem de que aquele espaço não é para ela. Esse é um dos fatores que nos faz entender de maneira simbólica e não de violência material, necessariamente, como o racismo é colocado na construção da sociabilidade espacial. Com isso, uma pessoa afetada por diferentes violências nesses espaços não quer estar e permanecer nesse espaço.
Logo, os direitos à cidade e à circulação sofrem interferência. A partir de violências externas e do racismo, a cidade se molda de outra forma para a população negra. Essa forma de organização espacial retroalimenta a lógica racial imposta. Há lugares onde brancos podem estar e outros onde pretos podem, e existem espaços onde pretos podem estar a trabalho ou sem sê-lo nesse caso – sabe-se quais são esses espaços. Isso é importante para, enfim, se pensar em como o direito à cidade constrói o espaço urbano.
Outro ponto que vem à tona é como populações de áreas centrais e periféricas sofrem, de modo diferente, os impactos das mudanças climáticas. Como o debate sobre direito à cidade ajuda a evidenciar as consequências do racismo ambiental e a criação de novas estratégias para combatê-lo?
Gelson Henrique: O racismo ambiental afeta espaços de periferias, pois pessoas negras são, a partir de processo histórico, colocadas lá. Ou seja, ele acontece em consonância com as desigualdades racial e de classe no Brasil. Quando se fala de alagamento, deslizamento e de pessoas sem acesso à habitação com qualidade necessária para ocupar determinados espaços da cidade, isso diz respeito a um processo anterior – sobre a organização racial na espacialidade da cidade.
No fim das contas, é importante pensar que as pessoas mais afetadas são as que mais produzem possibilidades de existência frente a essa realidade. As pessoas que estão no primeiro momento em que acontece uma questão climática são aquelas que estão, afinal, no próprio território. Ou seja, elas começam a se mobilizar e construir alternativas para a própria vida.
A grande chave para pensar-se em novas estratégias é olhar para as periferias. Ao olhá-las, é possível vivenciar qual é a consequência do racismo ambiental, como é enfrentado e o que precisa ser fortalecido. É necessário escutar quem pensa politicamente sobre adaptação climática e diferentes formas de lidar com a crise climática e o racismo ambiental. Essas vozes estão nas periferias e são as mais negligenciadas quando se fala em direito à cidade.
Saiba mais: Qual é a relação entre equipamentos públicos e o direito à cidade?
É correto pensar que a plataformização do transporte e da entrega de alimentos, economicamente falando, retroalimenta a desigualdade socioespacial? Como os seus efeitos podem ser relacionados com o debate sobre direito à cidade?
Considero importante analisar a plataformização dos transportes desde as entregas por meio de aplicativo. Nesse sentido, o racismo opera em todos os espaços e afeta diretamente o uso da cidade e a circulação da população negra. Assim sendo, não seria diferente para entregadores de aplicativos. Ao olharmos para o processo sobre quem são os entregadores de aplicativo e por que o são, chega-se novamente à camada pobre negra da sociedade que precisa de oportunidade. E essa plataformização da vida acaba entregando isso.
Na minha dissertação, à luz de Lélia Gonzalez, penso um pouco na questão do trabalho. Como existe lucro triplo em cima de jovens negros, especificamente na plataformização? Para essas pessoas basta ter, entre muitas aspas, “força de vontade para trabalhar”. Isso porque elas podem alugar uma bicicleta de determinado lugar e fazer entregas para determinado restaurante, sendo operacionalizadas por um determinado aplicativo. Logo, há, no final, três fontes de lucro sobre pessoas negras que, em tese, têm força de vontade necessária para trabalhar. Assim, elas conseguem alguma renda necessária para sua família.
Assim sendo, é necessário olhar para como a plataformização, as plataformas e essa forma de organização de trabalho estão a serviço da desigualdade de raça e de classe. Nesse sentido, estamos falando de pessoas que fazem jornadas gigantescas para levar algo para casa e se alimentar. Pode-se pensar, de maneira muito objetiva, em como o racismo opera e organiza o mercado de trabalho e a circulação da cidade dessas jovens negras. Um exemplo nesse sentido, assim sendo, diz respeito aos casos de racismo com entregadores vistos nos últimos tempos são analisados – os quais têm aumentado cada vez mais.
Com isso, em momento nenhum há, nessa triangulação do lucro, cuidado e atenção sobre como entregadores circularão de maneira segura pela cidade. Logo, vê-se o contrário: como diferentes violações e violências raciais acontecem com essas pessoas. Não existe política institucional – pelo menos não foi publicizado – pensando sobre isso. Não há, afinal, entendimento na forma de se analisar a segurança de entregadores, que no final, são apenas vistos como mercadorias. Idem se essas pessoas têm segurança para circular e executar essa atividade. Sabe-se quais são a classe e o público relativos aos entregadores, que têm suposta liberdade econômica de trabalho e de tempo. Penso que isso se relaciona ao debate de direito à cidade. Em determinados espaços onde esses entregadores rodam, eles estão, desse modo, mais propensos a violências raciais do que em outros locais.
Ao pensarmos no período eleitoral, como o debate sobre direito à cidade pode ser um vetor para a construção de projetos políticos multissetoriais que coloquem a promoção da equidade racial e territorial como aspectos centrais?
Gelson Henrique: É muito importante considerar o Executivo no processo eleitoral, sim, mas é necessário também ver com muita atenção para o Legislativo. Isso diz respeito a construir casas legislativas com pessoas que tenham como agenda e plataforma política a construção da cidade com base na garantia do bem viver da população negra e pobre. Idem sobre cidades que, de fato, deem conta da nossa existência. E, com isso, que não façam a manutenção de espacialidade desigual entre pretos e brancos, pobres e ricos e todas as camadas nas quais se consegue pensar e entender.
É muito importante entender, no processo eleitoral, que a construção de opinião política do nosso voto precisa passar pelo campo de pessoas que pensam sobre a construção da cidade. Isso abrange também entender, enfim, a dinâmica espacial e a infraestrutura com base em decisões políticas.
É necessário considerar, para ontem, nomes e pessoas que estejam pensando sobre isso. Vou um pouco além: precisa-se eleger pessoas que sejam e estejam nas periferias, e que pensem sobre cidade e outros temas de maneira transversal para a melhoria dessa parte da vida dessa parte da população. A mesma coisa vale para aquelas que tenham coerência política de construção capaz de dar conta da valorização da nossa existência, da garantia de direitos e da redução das desigualdades. Pensar a cidade como esse grande palco de disputas políticas é pensar quem opera essa política e a serviço do quê. Por fim, isso vale também para se pensar, no projeto político, em pessoas que consigam olhar para isso e fazer disputa capaz de dar conta da nossa existência.
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Romulo Ferreira