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A desinformação lida com o medo e o terror verbal – Entrevista com Magali Cunha

O fluxo de desinformação observado no Brasil nos últimos anos tem impactado segmentos sociais diversos e plurais, resultando na polarização sociopolítica na sociedade e nos frequentes ataques às instituições democráticas. Alguns desses setores expostos à disseminação em massa de conteúdos mentirosos abrangem fiéis de religiões diversas. As relações entre política e religião, assim como os impactos causados pela veiculação de fake news e o trabalho para desmenti-las compreendem a atuação de Magali Cunha.

 

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, agência de checagem de fatos voltada à análise de conteúdos veiculados de mídias religiosas e em redes sociais que abordem conteúdos sobre religiões.

 

Nesta entrevista, Magali Cunha fala sobre o trabalho para compreender, por meio de pesquisas e estudos em áreas diversas, as múltiplas dinâmicas da relação entre política e religião, assim como estratégias para combater a desinformação. O diálogo passou por uma série de pontos que apontam possibilidades para além do discurso essencialmente factual, ao mostrar que fatores como conexão emocional e a quebra de estereótipos são fundamentais para distensionar relações e alcançar consensos democráticos.

 

Confira a seguir a entrevista na íntegra com Magali Cunha.

Apesar do discurso sectário adotado por lideranças de vertentes religiosas diversas, iniciativas como o Novas Narrativas Evangélicas visam propor perspectiva inclusiva e que combata a polarização em âmbitos político e religioso. Como iniciativas com esse perfil propõem romper com estigmas e estimular debates pautados pela pluralidade religiosa?

É muito importante, pois há um certo senso comum de homogeneizar compreensões, de que grupos religiosos são uma coisa só. Haveria, entre aspas, os espíritas, os católicos, os evangélicos. Isso proporciona incompreensão, preconceitos e estigmas do lado de quem não vive a religião. Isso vale também para a estratégia de alguns grupos religiosos que a instrumentalizam para propósito político, dentro da linha sectária, ao usar a estratégia da homogeneização para fazer valer seus discursos.

 

Qualquer iniciativa que reforce a pluralidade e faça emergir a diversidade de pensamentos, de posicionamentos, de vivências religiosas também. Isso ocorre, pois não estaríamos somente na linha do discurso propriamente dito, mas das vivências. Elas são muito significativas no enfrentamento da homogeneização que só faz reforçar a intolerância.

Há estimativas segundo as quais a população evangélica ultrapassará numericamente a católica em 2032. Como as lições aprendidas nos últimos anos mostram que o campo progressista precisa criar pontes de diálogos com esse segmento?

O campo progressista precisa compreender esta realidade. Por isso, acho que já demos passos muito importantes. Especialmente no período do governo de Jair Bolsonaro, com o protagonismo que a religião ganhou, instrumentalizada pelo governo Bolsonaro, com a presença de personagens religiosos no governo, na liderança.

 

Até então havia experiência com a presença mais intensa no Congresso Nacional e, durante o governo Bolsonaro, esta evidência ficou muito mais intensa pela participação no Executivo e também no Judiciário. A presença dos grupos religiosos – não só evangélicos, mas também dos outros grupos cristão e de outras relacionadas ao governo – trouxe uma evidência tão grande que pressionou e forçou os grupos progressistas, que até então descartavam considerar a religião com o seu lugar tão relevante na cultura, na sociedade brasileira, a buscar e ao menos tentar compreender esse processo.

 

Eu mesma participei pelo Iser, meus colegas e minhas colegas pesquisadoras/es do Iser, de outras frentes que estudam religião, tantos convites, participações em lives, em livros, artigos, palestras, de grupos buscando compreender esse processo e qual significado tem na vida da população brasileira, na relação com a política, com a economia e com uma série de frentes relativas à nossa dinâmica social para, então, precisarmos dar o outro passo: na formulação de políticas públicas que levem em conta essa dimensão religiosa.

 

Pelo o que ouvi das primeiras manifestações das lideranças do novo governo, como no Ministério dos Direitos Humanos, com Sílvio Almeida, da Igualdade Racial, com Anielle Franco, e no Ministério da Saúde, com Nísia Trindade, há boa perspectiva nesse sentido. Isso nos dá esperança de que essa temática seja tratada nas políticas públicas.

 

 

 

Magali Cunha fala sobre possibilidades para contornar empecilhos dentro desse contexto para haver consensos no diálogo entre pessoas de perspectivas e vivências diferentes

Discursos que propõem, de modo abstrato, a defesa de valores morais e de um modelo familiar são usados por grupos autodenominados conservadores para defender bandeiras reacionárias. Como a perspectiva religiosa pode ser uma aliada para romper com esse tipo de retórica excludente dentro dos campos da comunicação e da educação, por exemplo?

Por meio do viés relativo à pesquisa. Ela tem colaborado fortemente, ao mapear o perfil de grupos religiosos que têm atuado na política, a plataforma religião e poder tem sido um material muito significativo oferecido a pesquisadores e interessadas/os no tema para compreender o lugar desses grupos na relação com os poderes executivo, legislativo e judiciário.

 

Desde 2018, pesquisas de mapeamento de candidaturas religiosas têm sido feitas para compreender discursos, pautas e a perspectiva que, obviamente, vem sendo forte dos grupos conservadores na política, tendo perspectiva hegemônica – mas também a presença crescente dos grupos progressistas. Estamos terminando uma pesquisa do mapeamento das eleições de 2022 sobre essas candidaturas. A oferta de conteúdo para se identificar pluralidade e diversidade de lideranças e de perspectivas contribui muito para superar a homogeneização e compreensão mais ampla sobre esses grupos, para haver ação direta e efetiva.

 

Desse modo, o Coletivo Bereia tem atuado no enfrentamento da desinformação. O monitoramento dos principais discursos em circulação em ambientes digitais religiosos – discurso de ódio baseado em fake news, em desinformação e informação enganosa -, em predominância em muitos desses ambientes, ocorre pelo monitoramento e pelo fact checking, ou seja, a checagem com o oferecimento de matérias que ajudem a população, especialmente a religiosa, mas não só ela, a compreender qual é a informação verdadeira e que foi negada – pois o direito humano à informação está sendo negado. A informação é um direito humano. O Coletivo Bereia, com a checagem de fatos e oferecimento da informação verdadeira, contribui para a defesa do direito humano à informação.

É possível pensar em trabalho de médio e longo prazo para, ao mesmo tempo, combater os vieses criados pensando em grupos com leitura de mundo mais fundamentalista para, aí sim, chegar no combate à desinformação?

Uma coisa nítida é que o combate à desinformação não passa tão somente pela racionalização desses discursos. Não é só oferecer um conteúdo com pesquisa, mostrar dados – “olha, isto aqui não é verdadeiro, pois o dado X mostra a mentira e está aqui o dado Y, que é a verdade”. Não é um processo tão somente racional.

 

Este processo passa muito pela emoção, pelo o que afeta as pessoas em termos emocionais. A desinformação lida muito com o medo e o terror verbal estabelecidos com os discursos. Aí entram o ódio, o medo e o terror causado nas pessoas, especialmente nas famílias, nas pessoas ligadas à religião que têm o cuidado com a família – e com ela como elemento muito caro a essas pessoas -, filhos, juventude e mulher. Há vulnerabilidades historicamente tratadas entre grupos religiosos – e quem produz desinformação sabe afetar nesses elementos vulneráveis.

 

Para nós, do Coletivo Bereia, está evidente que não é só pela razão que será possível convencer as pessoas que circulam desinformação e mentira – deve-se lidar com sentimentos também. Ao oferecer um conteúdo, é necessário oferecer um que respeite o que afeta as pessoas. A linguagem deve ser ao mesmo tempo jornalística e respeitosa com a questão religiosa que perpassa o universo naquele público. É um desafio muito grande para lidar com sentimentos e afetos.

Há também a questão sobre veículos de comunicação tradicionais e o poder público, que são vistos como instituições desconectadas da população, e por isso são consideradas como fontes não confiáveis.

Uma característica de grupos ultraconservadores, especialmente os ligados ao fundamentalismo religioso, é trabalhar com a ideia de inimigos. Há inimigos, inimigos da fé, da pátria e da família, para se enfrentar e combater. Um desses inimigos é o jornalismo clássico, colocado como um alvo produtor de conteúdo que trará elementos nocivos à família, à pátria e à religião.

 

Constrói-se uma imagem sobre a grande mídia segundo a qual ela é um elemento nocivo, alinhado a poderes: trabalha-se a ideia de inimigos ainda maiores, que são poderes globais, inimigos da pátria, da família e da religião. Desse modo, a imprensa seria uma aliada desses inimigos maiores e, por isso, um inimigo a ser enfrentado. Por isso, cria-se uma série de mídias alternativas comprometidas com o ultraconservadorismo e o fundamentalismo. Trata-se de veículos de desinformação, pois estão aí para servir a esses grupos oferecendo conteúdo que alimente a pauta do combate a inimigos. Esta é uma questão muito densa para se enfrentar.

 

 

 

Magali Cunha fala sobre o papel do poder público para haver diálogos propositivos, em âmbito democrático, com setores plurais e com interesses díspares na sociedade

 

 

Entrevista: Amauri Eugênio Jr.

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