Superar preconceitos e construir uma trajetória independente não é uma tarefa impossível, desde que se saiba exatamente quais estruturas funcionam para impedi-la. Neste sentido, a força feminina de Eliane Dias, advogada, produtora e empresária dos Racionais MC’S e uma das principais vozes na defesa da causa negra, foi importante para o fechamento do ciclo I do CLIPE, o Circuito Literário nas Periferias, um projeto da Fundação Tide Setubal em parceria com a Companhia das Letras.
Desta vez, o Circuito aconteceu em Ermelino Matarazzo, no último dia 15 de dezembro, na Ocupação Cultural Mateus Santos. A Ocupação busca valorizar a produção cultural periférica feita pelos próprios atores da periferia e, está, há três anos, num prédio antes desativado por décadas. Ela objetiva ser um dia a Casa de Cultura de Ermelino Matarazzo e Ponte Rasa e, atualmente, oferece cursos, saraus e é também um espaço para diversos coletivos culturais. A literatura é o carro chefe da ocupação, com oficinas de poesia, os Slams, cursos de escrita, uma biblioteca comunitária alimentada pelo bairro e um acervo só com livros da periferia.
“Receber a Eliane e o Clipe foi uma honra para nós” diz Douglas Barbosa Andrade, integrante da Ocupação. “Esta é uma ação que está em conexão com os nossos saraus e a parceria com a Fundação Tide Setubal facilitou muito o processo de organização. Acho marcante quando Eliane conta da luta para estar na academia, isso fala diretamente a nós. Porque a academia ainda é muito distante da nossa realidade. É difícil da gente acessá-la, e até mesmo a usp leste, que está fisicamente perto, é muito distante”.
As questões do acesso à universidade pública e do aprofundamento da cultura letrada é ainda um desafio para o Brasil, embora tenhamos tido consideráveis avanços nos últimos 25 anos. Na voz de quem está na periferia, é quase unânime a sua importância. É o caso de Malu Gomes, articuladora cultural da Fundação Tide Setubal, moradora do Jardim Lapenna e a responsável por mediar o encontro de Eliane Dias com a plateia presente.
“Foi a primeira vez que fiz a mediação e, apesar do nervosismo inicial, foi mágico, porque pude me identificar com a história da Eliane. Ela teve uma vida de luta e resistência e conseguiu superar as dificuldades, como o fato de ser a primeira da família a ter uma formação acadêmica. No meu caso, depois de mim, outros familiares se sentiram estimulados a fazer uma faculdade e isso é muito importante para a nossa transformação. Foi a partir dessa formação que eu consegui sair da bolha, deixei de ter receio das pessoas e de sair do meu bairro para conhecer o mundo”
Neste sentido, a literatura serve para afirmar identidades e, também, para permitir utilizá-la como uma ferramenta de inclusão. As questões raciais e sociais por vezes confundem-se nas estruturas que impedem a superação dos preconceitos, porém, a possibilidade de ver-se como produtores de cultura local por meio da escrita pode ser o impulso para a desejada transformação.