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Tecer a rede. Furar a bolha. Escutar

 
Por Amauri Eugênio Jr. e Daniel Cerqueira / Fotos: Nina Oliveira/Tapera Taperá
 
 
Diz o senso comum que quando um não quer, dois não brigam. Apesar de esse ditado popular ter sido relevante por um bom tempo, a impressão vigente é de que essa expressão se tornou obsoleta quando se fala do Brasil atual: basta uma pessoa ouvir uma palavra que lhe desagrade, mesmo concordando com a mensagem principal, para fechar a cara.
 
Talvez não seja coincidência que momentos antes associados à confraternização se tornaram verdadeiros campos minados em virtude de perspectivas políticas. Além disso, puxar um assunto com uma pessoa desconhecida no elevador ou no transporte público, por exemplo, passou a ser uma atitude de risco. Isso sem contar que as redes sociais tornaram-se um capítulo à parte: o que chegou a ser considerado um dia como um diálogo propositivo virou um duelo no qual o objetivo é derrotar o interlocutor.
 
Situações como as expostas acima mostram que, cada vez mais, é fundamental buscar o diálogo para as relações sociais voltarem a ser pacíficas, ainda que com discordâncias. Logo, vale recorrer à lógica que serviu como base para a vinheta da websérie #Enfrente, da Fundação Tide Setubal, na qual pessoas de segmentos e contextos sociais diversos dão relatos de como a tolerância e o diálogo são altamente benéficos em âmbito social.
 
A necessidade de busca por diálogo tornou-se ainda mais desejada após a campanha eleitoral de 2018, a qual deixou a sensação de o Brasil ter tornado-se um país fraturado e com diferenças irreconciliáveis entre dois grandes blocos sociopolíticos e culturais.
 
 
 
Esther Solano fala sobre a pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais (Nina Oliveira)
 
 
Mas, será mesmo que é o caso? Em junho, a Fundação Tide Setubal, em parceria com o Plano CDE lançou a pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais, na qual foram entrevistadas pessoas que se consideravam conservadoras não radicais. Uma parte significativa de quem foi ouvido fez menções positivas ao passado, reforçando o estigma de que a vida era melhor antigamente, mas reconheceu haver desigualdades sociais e discriminação de raça, gêneros e sexualidade. Ainda assim, elas entendiam se tratar de casos individuais e não socialmente sistêmicos, além de levarem em conta que grupos voltados à defesa de pautas identitárias recorriam à vitimização, ou seja, não se viam como pessoas responsáveis por mudanças em suas próprias vidas, ou à lacração – leia-se arrogância para apresentar argumentos.
 
Mesmo com a discordância em relação ao modo como temas identitários são defendidos, este grupo está, de acordo com a pesquisa, aberto ao diálogo. “Acredito que existe uma janela de oportunidade boa, pois as pessoas querem de fato conversar e têm necessidade de restabelecer o diálogo. Elas estão cansadas da agressividade e da tensão que foram criadas e o restabelecimento da normalidade democrática é uma coisa que as pessoas estão pedindo muito”, destaca Esther Solano, doutora em Ciências Sociais pela Universidad Complutense de Madrid, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultora técnica da pesquisa.
 
 
Ajustar o discurso
 
Volta e meia é possível ouvir alguém dizer que pessoas e grupos envolvidos com a defesa de pautas identitárias têm comportamento ora radical, arrogante ou vitimista. Além disso, estudos científicos que comprovam mudanças climáticas têm sido refutados por alguns grupos ou, ainda, temos a existência de um movimento antivacina e outro terraplanista. A pergunta que fica é: como dialogar com pessoas com pensamentos tão distintos?
 
Um fator para opiniões sem embasamento teórico terem sido colocadas em equivalência com dados científicos com certa frequência é o fato de a negação ao conhecimento, assim como o descrédito de instituições até pouco tempo incontestáveis, é o modo como intelectuais e a academia têm dialogado pouco com a sociedade civil e se encastelado nas próprias bolhas.
 
A autocrítica por parte de pesquisadores, intelectuais e da própria academia é necessária. Uma possibilidade de mudança é procurar maneiras para reformular o modus operandi e mostrar à sociedade porque pesquisas produzidas lá, seja nas áreas científica, biológica e de humanidades, são relevantes para o dia a dia da população. “Pesquisadores e intelectuais precisarão sair dos seus gabinetes e das universidades para dialogar com as pessoas e mostrar os seus resultados e fazer o debate mais próximo às comunidades”, comenta Juliana Borges, autora do livro “Encarceramento em Massa”, que participou de debate sobre a pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais na livraria Tapera Taperá, em São Paulo.
 
Ao seguir a mesma linha de Borges, mas no que diz respeito à aplicação de políticas públicas, o mestre em Ciência Política Rafael Georges, que também participou do mesmo evento, julga ser necessário mostrar como tais iniciativas proporcionam benfeitorias para a sociedade. “Para isto, o discurso deverá ser ajustado: por exemplo, como citar apenas fatos e números tem sido pouco eficaz para demonstrar como tais políticas são importantes, é possível contar histórias a partir dessas informações. E para contar uma história a respeito é necessário entendê-la.”
 
Para quem se questiona sobre como é possível dialogar sobre pautas identitárias, uma possibilidade é abordá-las por intermédio de pautas transversais e que tenham muito mais apelo entre pessoas conservadoras, como crise econômica, vulnerabilidade nas condições de trabalho e segurança pública. “Uma questão muito importante é entender os mecanismos de reação e sentimentos, sobre como funciona a masculinidade branca, o antifeminismo, entre outros aspectos, para desconstruí-los. É necessário procurar por esses temas e criar sensibilidade e empatia com o máximo de setores possíveis”, completa Esther Solano.
 
 
 
Juliana Borges fala durante evento sobre a pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais (Nina Oliveira)
 
 
Comunicar para ouvir e dialogar
 
Quando se fala em dialogar com outra pessoa, um aspecto que logo vem à tona diz respeito à comunicação não violenta (CNV). Desenvolvido pelo estadunidense Marshall Rosenberg, o método, segundo o qual todo conflito é sinal de uma necessidade não atendida, é fundamentado em quatro pilares, que são: separar fatos de julgamentos, reconhecer emoções desconfortáveis, revelar necessidades não atendidas e firmar um acordo para viabilizar a convivência no futuro.
 
De acordo com Silvio de Melo Barros, especialista em comunicação não violenta e mediação de conflitos e professor da Associação Palas Athena, expressar necessidades e assumir a responsabilidade por atendê-las, assim como pelos nosso sentimentos, não faz parte da nossa formação social, logo, aprendemos a comunicar insatisfações e carências por meio da culpa e da punição.
 
Ainda, a identificação com o próprio pensamento sobre determinado assunto condiciona a criação de perspectiva fundamentalista sobre determinado tema, o que resulta em (adivinhe?) perda de conexão para o diálogo. “Quando me torno aquilo o que penso, construo um muro, pois se o outro não aceita o que penso, é como se o outro não aceitasse a minha identidade, por eu não conseguir separar o que penso de quem sou. Quando atuamos a partir desse lugar de fala, fica muito difícil construir diálogos produtivos sobre quaisquer temas.”
 
Como a comunicação não violenta atua neste cenário? O método ajuda a ver que não é necessário temer conflitos ou ver como inimigas pessoas de quem discordar. Além disso, a CNV interrompe a lógica binária, ou seja, que há algo certo e errado, normal ou anormal, por exemplo, e incentiva a ouvir empaticamente o que o outro tem a dizer com acolhimento e sem julgamento de valor. "Isto não significa concordar com a opinião daquela pessoa, porém, quando ofereço um espaço para você se expressar autenticamente e sem medo de ser criticado, nesse momento construímos uma ponte para travarmos diálogos com uma outra qualidade de conexão”, ressalta Mello Barros.
 
Juliana Wallauer, apresentadora do podcast Mamilos ao lado de Cris Bartis, considera que as redes sociais têm papel importante na polarização política, uma vez que se entende haver uma espécie de premiação implícita para conteúdos inflamatórios ou “que irão gerar muita raiva ou identificação, e esse é o modus operandi da rede social polarizar a discussão. Isso polariza a nossa visão e contamina o nosso jeito de discutir quando a gente sai da rede social e vai conversar com as pessoas.”
 
Por outro lado, a apresentadora considera também que a maior contribuição da CNV, a qual ela e Bartis têm usado no podcast do qual participam, é mostrar que o diálogo pode ir muito além de dicotomias e que a raiz de conflitos é a existência de necessidades não atendidas. “De modo mais aberto, a gente se relaciona com quem está à nossa frente em vez de um espantalho, com quem a gente se senta não para convencê-la de ter a visão de mundo que queremos, mas para expormos quem somos, para atendermos às necessidades do outro. Acredito que essa abordagem tem muito para contribuir no cenário polarizado de discussão.”
 
Por fim, Juliana Wallauer entende, por outro lado, que se foi o tempo em que era possível obter ganhos ou fazer valer determinada opinião por meio de atitudes intransigentes. “Mesmo que as pessoas não queiram mudanças e não estejam abertas, não está mais dando certo conseguir as coisas na base do autoritarismo.”

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