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Da existência à insistência: a literatura de saltar imaginações de Jenyffer Nascimento

@Comunicacao

20 de dezembro de 2018
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Por Tony Marlon / Fotos: Kacey Carter

 

 

Poderia ter começado assim, mas isso foi o meio de toda a conversa que tiveram: “Que diferença faria na nossa vida se tivéssemos tido outros referenciais quando crianças? Um referencial indígena, nordestino, sobretudo um referencial preto e quilombola?”, olhares atentos, pouca conversa na sala. Longe do hábito do ambiente. E a poeta e força da natureza, Jenyffer Nascimento, continuou: “Que diferença teria feito na nossa vida se tivéssemos visto personagens com os nossos rostos, nossos cabelos, o nosso jeito de falar?”.

 

Antes de falar com a palavra, instrumento de trabalho, jeito de ser e estar no mundo, a escritora que nasceu em Paulista, no Pernambuco, mas existe desde sempre a partir do Jardim Ibirapuera, periferia da zona sul, se comunica com a presença. Deve ser por isso que tantos adolescentes da EMEI CEU Vila Atlântica, no Jaraguá, tentavam ler a chegada de uma escritora que viria falar com todas e todos eles naquela tarde de setembro, como veio. Mas é que o imaginário do que é um escritor passa longe da pessoa que entrou pela porta, pouco depois das duas. Pessoa feito as pessoas que a esperavam, de carne, osso e território.

 

 

 

“Quando a gente vai pensar no escritor, na escritora, a gente sempre vai vincular uma imagem de uma mulher ou homem branco, como se as pessoas negras, pessoas pretas não escrevessem. E a gente sabe que isso foi um processo histórico de invisibilidade, de apagamento, pois não interessa que nos descubram, que saibam da nossa existência. E isso é porque temos muito a dizer”, contou aos olhares atentos depois de narrar toda a história que a havia levado até ali.

 

Se apaixonando pelo RAP ali pelos 13 anos, ela lembrou, foi na música que encontrou eco para várias coisas que não entendia sobre os lugares em que foi morando, deixados para trás um a um por não conseguirem pagar o aluguel. Poucos com tanto, muitos sem quase nada. A música foi a ajudando a entender por qual motivo as coisas são como são, apesar de não precisarem continuar sendo assim. E dos apaixonamentos pelas batidas misturadas às palavras de protesto nasceu o Minas do Subúrbio, pouco tempo depois. Um grupo de rap formado por mulheres que não se cansavam de responder a mesma pergunta sempre, em todo canto:

 

“Quem escreveu essa letra? Quem foi que fez, diziam. O rap era dominado por homens, e essa era mais uma forma de violência sobre nós. Era como se as pessoas tivessem dúvidas se nós éramos capazes de fazer letras iguais aquela”, relembrou.

 

Jenyffer esteve no CEU Vila Atlântica a convite do Sarau Elo da Corrente, que movimenta atividades entre a cultura e a educação desde 2007, a partir de Pirituba. Raquel Almeida, uma das tecedoras do coletivo, contou que as criações literárias de Jenyffer, aliadas à sua trajetória e à sua identidade, mulher, negra, periférica, moveu o imaginário dos mais de 40 adolescentes que participaram da atividade, certeza. O evento integrou o Circuito Literário das Periferias – CLIPE, da Fundação Tide Setubal.

 

“O que acontece com a gente dentro das quebradas é a falta de referência. Hoje em dia até melhorou, mas ainda falta muito. Quando trazemos a Jenyffer, ela poderia ser qualquer uma daquelas meninas que estavam ali no encontro”, chamou a atenção a também escritora Raquel, complementada por Jenyffer durante o encontro. A literatura salta a imaginação, depois o corpo acompanha.

 

(clique aqui e escute-a a contar sua história)

 

Muitas e muitos que estiveram no encontro tem a idade em que Jenyffer e Raquel começaram  a construir as suas jornadas literárias. Homens e mulheres nascidas nos extremos da cidade, com pouco acesso aos direitos fundamentais, que resistem inventando seus próprios mundos e jeitos de viver. Feito a literatura faz. Foi um pouco por aí que foram emergindo propostas como o Elo da Corrente, sujeitos políticos e poéticos feito Jenyffer.

 

“A nossa literatura marca um lugar de existência, para além da resistência”, comentou. “Resistir a gente resiste todos os dias. Mas a gente quer existir na nossa subjetividade, na nossa integralidade, com tudo que temos direito”, trouxe a poeta que só se descobriu e se assumiu neste lugar depois de escutar de tanta gente que aquilo que escrevia era algo maior que só perpetuar memórias numa folha. Explicou assim para o silêncio interessado da sala do CEU o motivo de se desacreditar tanto poeta: “Para mim, eram pessoas que já tinham livros lançados, uma ideia de alguém que está a frente. Pensava como eu poderia ser uma poeta, se o meu referencial era Carlos Drummond de Andrade. Mas se eu tivesse tido acesso e conhecesse Carolina de Jesus, eu pudesse me entender e me apresentar como uma escritora bem antes”.

 

(escute aqui o poema)

 

 

A literatura de pé no chão, da Jenyffer, coração nas nuvens, move interesse até daquelas e daqueles que não se apaixonaram pelos livros como eles merecem ser apaixonados. Cada um, uma, por motivo. É o bairro que não tinha onde consegui-los, a escola que forçou demais leituras desapaixonantes, a vida que fez as pessoas adultas rápidas demais, sem tempo para isso de viver a vida dos outros pela palavra, e por aí vai. Para a poeta, nada é mais gratificante que conseguir que seus livros restaure a paixão deste leitor, em específico.

 

“Quando pessoas que dizem que não gostam de ler me contam que leram meu livro até o final, eu fico super feliz. Quem está me dizendo isso: uma mulher que trabalhou o dia todo, o senhor que está lá no bar, no fim da tarde. Ou a menina de 14 anos na escola. A gente não precisa ser validada e reconhecida pelos espaços de sempre. Quando a minha comunidade me reconhece, reconhece o que eu faço, este já é o maior presente que a vida pode me dar”,  compartilhou.

 

Do começo de frequentar saraus, 2006, quando descobriu que as pessoas comuns, que acordam cedo, que vão trabalhar, que pegam ônibus lotado, também escrevem, cantam, fazem peças de teatro, até conseguir ler seu primeiro texto em voz alta, ela contou, foram poucos mais de seis anos. Coragem é algo que se contrai dia a dia. “Pra eu entender e desmistificar que quem escrevia não havia nascido com um dom, que ela nasceu escrevendo. Isso só é mais um dos fantasmas que a gente tem que vencer até conseguir mostrar e acreditar nas coisas que a gente faz”, revelou Jenyffer, para encerrar o papo assim, revelando de onde foi tirando as forças para iniciar este movimento todo na sua vida: “Eu descendo de um povo que não pôde desistir. Eu recuperei as minhas forças conhecendo a história do povo negro, das mulheres negras. E a palavra tem grande poder.”


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