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Fundação Tide Setubal entrevista Gisele Brito

@Comunicacao

28 de maio de 2018
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Por que o aniversário da Avenida Paulista rende um especial nos jornais, mas os 190 anos de Parelheiros são ignorados? O que leva uma árvore caída em Perdizes a ser mais relevante que uma no Capão Redondo? Segundo a jornalista Gisele Brito, a falta de um olhar para as periferias por parte dos veículos tradicionais gera consequências imediatas e futuras para os territórios. “A mídia produz narrativas que moldam a história. Se no presente ela tem a função de informar as pessoas, no futuro gera documentos históricos. Então quando a mídia ignora a gente, ignora a nossa história”.

 

A repórter freelancer e colaboradora do coletivo Casa no Meio do Mundo é integrante da Rede Jornalistas das Periferias, que reúne comunicadores e coletivos de comunicação de diversas regiões de São Paulo com o objetivo de fortalecer a representação das periferias na mídia e apoiar os jornalistas de territórios periféricos.

 

Em 2018, Gisele lançará ao lado de sete coletivos (Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e não me Enrola, Historiorama, Imargem, Periferia em Movimento e TV Grajaú), com apoio da Fundação Tide Setubal, o especial No Centro da Pauta – Periferias, Desigualdades e Planos de Governo. O projeto, que reúne 32 conteúdos multiplataforma, entre reportagens, vídeos e podcasts, propõe a produção de conteúdo jornalístico sobre, para e a partir das periferias para o cenário político de 2018. Em conversa com a Fundação Tide Setubal, a jornalista fala sobre estereótipos, os principais desafios do jornalismo alternativos e sobre formas de melhorar a representação das periferias em grandes veículos de mídia. Confira.

 

 

Quais as características da cobertura feita pela mídia tradicional às periferias?

 

As periferias não estão na pauta nos veículos de comunicação. Quando essa cobertura é feita, acontece esporadicamente, com um caráter de especial, cobrindo o curioso, quando na verdade o cotidiano desses territórios é cheio de potência, de coisas importantes acontecendo, e também um cotidiano de problemas, que deveriam ter cobertura.

 

O principal problema na cobertura é a forma como ela é estereotipada. Há visibilidade para casos excepcionais, sempre com histórias de superação, como um catador que entrou na faculdade lendo coisas que encontrou no lixo ou algo nessa linha. Mas cotidianamente as pessoas têm que fazer um esforço enorme pra ir até a faculdade, pegar ônibus duas horas por dia, e a gente normaliza isso e cobre apenas o esporádico, como se fosse algo eventual. Pode parecer banal, mas a gente também tem buracos na rua no Capão, também cai árvore no Jardim Brasil, também tem praça sem carpir, mas a mídia mostra esse tipo de problema apenas quando estão no centro da cidade.

 

Esse problema de representação na mídia reflete a dinâmica de toda a cidade, em que há a segregação entre pobres e ricos, negros e brancos, os espaços são muito mais abertos para os homens que para as mulheres, para os héteros que para os LGBTs, e essa visão de cidade que reflete as nossas injustiças sociais é espelhada nos meios de comunicação, que naturalizam fazer matérias sobre buraco em Perdizes ou festivais comerciais patrocinados por empresas gigantescas, e ignora iniciativas de produção cultural independentes em São Mateus.

 

 

Quais as consequências dessa cobertura esporádica e estereotipada para as periferias?

 

Sabemos, inclusive por meio de dados, que as periferias têm problemas de investimentos e de infra-estrutura. São locais desprovidos de coisas, e isso está muito fixo no imaginário das pessoas. A partir do momento em que você naturaliza essa representação, naturaliza também a distribuição desigual de recursos feita pelo Estado. Precisamos de visibilidade, tanto para as coisas boas como para as coisas ruins das quebradas, para que as pessoas ampliem suas vozes e a gente consiga mudar a opinião pública, hoje pouco atenta aos problemas da população mais pobre, das periferias.

 

Periferia não é apenas uma questão geográfica. Tem uma ideia do urbanismo de que o centro é onde as elites estão, e pode mudar de lugar conforme as elites se movimentam na cidade. Vemos isso em São Paulo, no caso do centro histórico, por exemplo. E temos as periferias, que são onde os pobres estão. Em uma cidade tão segregada como São Paulo, você ser do Capão Redondo é muito diferente de ser da Vila Mariana. Você vai ter vivências e experiências muito diferentes.

 

Para resolver, a cobertura deveria mostrar que, apesar das diferenças, não somos de outra cidade, estamos na mesma. A maior parte dos habitantes de São Paulo mora nas periferias, mas sua potência, sua luta, toda a articulação política e cultural desses território e o que constroem nas margens é ignorado.

 

Essa falta de cobertura impacta muito as referências das pessoas sobre onde elas vivem, pois elas muitas vezes não ficam sabendo das conquistas locais, frutos de mobilização política. A pessoa mora, por exemplo, na Zona Sul e acha que o povo de lá é alienado, não faz nada, e mal sabe que a linha de ônibus que el pega é resultado de uma luta, da ação de pessoas que se juntaram, fizeram demandas. Tudo isso deveria estar no centro da pauta desses veículos, mas não está.

 

 

Como o conteúdo dos coletivos de comunicação das periferias difere dos veículos tradicionais?

 

Primeiro de tudo, temos essa “cotidianização” de nosso ponto de vista. A transversalidade dos assuntos, com o território, raça, gênero e classe, estão no centro da nossa pauta, e buscamos outras abordagens para os diferentes assuntos.

 

Outra diferença está nas fontes. As fontes no jornalismo tradicional são especialistas com algum conhecimento reconhecido publicamente. Mas com o ciclo vicioso de manutenção de privilégios, essa fonte costuma ser o homem branco, de elite, de uma família com acesso a ensino superior há muitas gerações, formado nas melhores universidades. Já os coletivos de comunicação buscam valorizar também fontes com um conhecimento empírico, que viveram muitas mudanças no mundo e podem contribuir com essa memória sobre processos de luta e de construção. Além disso, temos pessoas que se formaram em universidades, voltam para suas comunidades e produzem conhecimento a partir desse lugar. Ouvir fontes que trazem diversidade, para além da educação formal, e valorizar o conhecimento local e popular, é muito importante.

 

A mídia produz narrativas que moldam a história. Se no presente ela tem a função de informar as pessoas, no futuro gera documentos históricos. Então quando a mídia ignora a gente, ignora a nossa história.

 

Por exemplo, tem aniversário da Paulista e sai um enorme especial com a história da avenida. Mas recentemente Parelheiros fez 190 anos e não apareceu absolutamente nada na mídia. Por que é menos importante saber a história de Parelheiros que da Paulista?

 

 

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), como celulares com câmera e internet, contribuíram para a expansão da mídia independente nas periferias?

 

Acho que as tecnologias deram mais visibilidade, mas as pessoas já se comunicavam e informavam de outras formas, como jornais de bairro, rádios pirata, fanzines, etc. Há muito tempo, as bases entenderam que comunicação é estratégica para qualquer luta e qualquer processo de mudança. Mas antes, ela tinha menos alcance para fora daqueles bairros. Então essa comunicação não era cristalizada em história, em memória.

 

Agora, com a internet, a gente fica sabendo de coisas que estão acontecendo em todas as regiões. O reconhecimento do que fazemos hoje é muito relacionado com a visibilidade. Mas outras gerações já fizeram isso, cada uma à sua maneira. Veja os Racionais, por exemplo, que eram conhecidos em todas as periferias antes da internet. Os movimentos de moradia sempre circularam informação pela cidade. O movimento negro tem toda uma tradição de mídias negras antes da internet.

 

 

Quais são os maiores desafios dos coletivos de comunicação atualmente?

 

Financiar as iniciativas é sempre um desafio, pois produzir o conteúdo e garantir que os jornalistas possam dedicar suas vidas a essa produção tem um custo. E na maioria das vezes esse custo não é atendido, então as pessoas têm que se dedicar a diversas coisas, o que atrapalha a nossa periodicidade e o conteúdo.

 

Também temos uma dificuldade de estrutura, de equipamentos e deslocamento. A infraestrutura muitas vezes é um obstáculo em territórios em que não há internet cabeada ou sinal do celular. Falamos muito da potência da internet, mas esquecemos que ela não chega em diversos bairros.

 

 

O que levou alguns coletivos da Rede Jornalistas das Periferias a fazer uma parceria com a Fundação Tide Setubal?

 

Quando pensamos em formas de viabilizar nosso trabalho, precisamos buscar recursos. Vivemos no Brasil um contexto de corte de investimentos.

 

No nível federal o congelamento de investimentos, no nível estadual o investimento destinado às periferias praticamente inexistente, e, no nível municipal, diversos editais de incentivo à cultura e projetos nas periferias congelados. Assim, é importante para os coletivos buscar fundos na iniciativa privada e no terceiro setor. E a Fundação Tide Setubal foi uma parceira desde o início. Alguns integrantes da Rede já tinham contato com a Fundação por outros projetos, e quando buscamos apoio a organização foi super aberta. Acredito que o fomento a iniciativas que discutem a democratização da comunicação e da cidade deve ser prioridade, e esse apoio é muito importante para que o nosso trabalho seja feito com qualidade.

 

 

Você pode explicar como será o projeto será o No Centro da Pauta, que conta com apoio da Fundação Tide Setubal?

 

O projeto é uma iniciativa de sete coletivos de comunicação (Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e não me Enrola, Historiorama, Imargem, Periferia em Movimento e TV Grajaú) que vão produzir conteúdo a partir de questões que estão no centro da pauta das periferias, como juventude, educação, saúde, cultura, negritude, emprego, arte e moradia. Esses temas deveriam estar no centro da pauta para toda a cidade, principalmente neste ano de eleição, pois atingem a maior parte da população, que vive em periferias. Serão 32 conteúdos multiplataforma, entre reportagens, vídeos, podcasts, etc. Cada coletivo fará pautas levando em consideração sua linha editorial, seu território e suas características, e em rede vamos trabalhar a divulgação disso. Não somos apenas veículos de comunicação ou uma agência de notícias, mas comunicadores e jornalistas trabalhando juntos. Não trabalhamos competindo entre os coletivos, pois achamos que quanto mais vozes desse tipo surgirem na sociedade, mais ampliado está o direito à comunicação.

 

Acompanhe as reportagens do especial No Centro da Pauta nas redes sociais da Fundação Tide Setubal e também nos canais dos coletivos participantes: 

 

Alma Preta 

 

Casa no Meio do Mundo 

 

Desenrola e não me Enrola 

 

Historiorama

 

Imargem 

 

Periferia em Movimento 

 

TV Grajaú 

 


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