“O campo de representações é um campo de disputa tão importante, pois o simbólico constitui o real”, diz Jailson Souza e Silva, geógrafo, professor da Universidade Federal Fluminense e fundador do Observatório de Favelas e conselheiro da Fundação Tide Setubal. Quando pensa em disputas simbólicas, Jailson tem em mente a guerra de narrativas sobre as periferias e favelas, com discursos enfatizando a ausência e a carência em competição com visões que levam em conta os talentos e força dos territórios. “Cada vez mais se rompe uma perspectiva civilizatória em torno das periferias, que busca formar as pessoas de cima pra baixo, e cada vez mais as elas ocupam um lugar central nas cidades. Esse reconhecimento não é derivado apenas da boa vontade das classes dominantes. É fruto da própria força, potência e capacidade de ação dos agentes e atores das periferias”, diz o geógrafo em conversa com a Fundação Tide Setubal.
Em tempos de polarização ideológica e narrativa, Jailson fala sobre a evolução do discurso sobre favelas, o conservadorismo e sua resposta ao assassinato de Marielle e sobre formas de valorizar os talentos das periferias. O pesquisador também comenta sua recente entrada para o conselho da Fundação Tide Setubal: “Me senti muito acolhido na primeira reunião, muito à vontade para falar um pouco da minha história, de como constituímos nosso trabalho. Por ser uma organização familiar, me senti integrante de uma instituição que é criada com muito cuidado e adesão de todos, isso me deu satisfação. Mais do que acolhido na dimensão institucional, me senti acolhido pela galera que está muito a fim de contribuir, que acredita que a periferia, os negros e as mulheres devem ter mais espaço para suas realizações”. Leia e entrevista completa:
Quais são os maiores problemas na narrativa sobre favelas no Brasil?
Historicamente, os espaços populares sempre foram apresentados a partir de uma visão que eu chamo de sociocêntrica. Os moradores de favelas, sobretudo as populações negras e mestiças, eram exemplificados a partir do paradigma da carência, da ausência. Com a visão sociocêntrica, eu julgo e represento os outros a partir dos meus próprios termos, da minha vida. Esse discurso é muito recorrente na lógica do racismo institucional e do sexismo. Mas ela começou a ser alterada. A partir dos anos 1990, surgem em várias partes do Brasil urbano muitas organizações formadas por pessoas das periferias. Pela primeira vez, pessoas como eu, Eliana, e tantos mais em São Paulo e no Rio atingiram a universidade, viraram doutores, mestres, ganharam inserção na literatura, na política, no ativismo. A gente conseguiu produzir cada vez mais narrativas onde os moradores oriundos de periferias aparecem como sujeitos. Com isso, começa a se construir o que eu chamo de paradigma da potência. Cada vez mais as periferias, seus moradores, espaços, dinâmicas e práticas sociais são representados a partir do que têm, e não pela falta.
Isso não significa idealizar. A favela tem muitos desafios, e com a lógica de se pensar a cidade a partir de espaços específicos, e não como um todo, muitas vezes ela não recebe a mesma oferta de serviços. A educação e a saúde sempre foram tratadas nas favelas sob a lógica da precariedade. O Estado nunca se comprometeu de fato com a segurança pública nas periferias. A questão ambiental é absolutamente ignorada na favela. Essa perspectiva diferenciada de investimentos gera espaços diferenciados e representações diferenciadas. O campo de representações é um campo de disputa tão importante, pois o simbólico constitui o real. Se a gente não disputa no campo simbólico, a gente não influi na forma como ele interfere na política, no real.
Como essa disputa de narrativas influencia a produção cultural e acadêmica das periferias?
São várias as linguagens de disputa, e a acadêmica é uma delas. O reconhecimento das artes nas periferias é outra luta. O processo de reconhecimento de nossa cultura tradicional é uma experiência comum, universal. Mas não se reconhecia as linguagens artísticas das periferias, elas eram sempre adjetivadas: o teatro era amador, a pintura Naif, a literatura marginal e a música brega. Não importa qual a forma de produzir, vindo da periferia é menor. Esse processo de falta de reconhecimento é proposital, fruto das formas distintivas que funcionam para a legitimação dos grupos sociais por meio das linguagens artísticas. Isso é uma disputa que está colocada.
O campo da arte é tão importante quanto as políticas urbanas. Tivemos três conjuntos habitacionais na Maré na década de 90 e nenhum tinha árvores. Um deles ganhou um prêmio internacional, mas era um absurdo porque não permitia o processo de ampliação das construções, não permitia a laje. E todo mundo sabe que, na vida na favela, a laje tem um peso fundamental, ela é o espaço de reserva de valor, de herança, por exemplo, e de lazer.
Então o desafio é justamente construir novos saberes e metodologias que permitam apreender de fato a experiência prática e as produções das periferias. Isso não é trivial. Tem que mudar o paradigma. Paradigma é olhar, é o filtro que você usa. Em nosso trabalho queremos estimular a construção de outros tipos de narrativas no campo do jornalismo, da publicidade e do vídeo nas favelas. Nosso trabalho com fotografia, por exemplo, é distinto de qualquer trabalho tradicional da vida na favela, pois apresenta o cotidiano na sua vivência, sua sensualidade, sua dor, sua dignidade. E isso não é o tradicional.
Como a grande mídia pode melhorar a representação das periferias?
Para melhorar a representação das periferias na mídia é preciso, primeiramente, de diversidade. Se você tem pessoas negras, lésbicas, travestis trabalhando em determinados espaços, as pautas de travestis, negras e lésbicas aparecerão. Você tem na grande mídia de hoje praticamente apenas pessoas brancas, de classe média, formadas em determinadas instituições. Sem diversidade territorial, de gênero, de orientação sexual, racial, você não vai ter pluralidade e diferentes olhares.
A segunda coisa é contribuir para pensar a periferia a partir do que chamo de olhar da presença e não da ausência. Lembro de uma amiga minha que foi me visitar na Maré, nunca tinha ido na favela, subiu no terceiro andar da casa, olhou pela janela e disse: “é mesmo muito feio. Como a cidade pode ser tão desigual?”. Ela estava enaltecendo o discurso de exclusão e desigualdade. Eu falei “feio é seu olhar domesticado, que não consegue perceber as diferentes formas de criatividade e de beleza que tem aqui, não consegue perceber a alegria das crianças brincando na rua, algo que você não tem mais na zona sul, aqueles velhinhos conversando, o grau de solidariedade e sociabilidade que existe aqui, a inventividade que está nessas casas, a capacidade de construir mesmo sem o apoio do estado e do mercado. Sua noção de beleza é completamente domesticada”.
Após o assassinato da Marielle, vimos o surgimento de uma narrativa desmerecendo sua trajetória e a investigação do crime. Por que isso ocorre?
É uma disputa de narrativas muito grande entre esses dois campos pedagógicos, o da monstrualização, que tira a humanidade de um conjunto de pessoas, e o da convivência. Com a Marielle, por exemplo, o argumento era “por que valorizar tanto a sua morte quando tantas outras pessoas morrem”? A pessoa não está preocupada com a morte de tantos outros, ela preocupa-se com o por quê de a morte dessa negra ser tão valorizada. Como ela não valoriza nenhuma morte de pessoas negras em periferias e favelas, fica revoltada de essa morte ser tão comentada, uma negra, pobre, de periferia e lésbica. Esse processo de monstrualização se sustenta em referências muito bem demarcadas de quem tem direito à vida e quem não tem.
Há um padrão nesses grupos de extrema direita que é o de falar “direitos humanos para humanos direitos”. Direitos humanos para humanos direitos significa “eu defino quem tem direito à vida, a ser reconhecido pela sua humanidade ou não. Quem não é, eu posso eliminar˜. A hierarquia é definida pela capacidade de consumo. Você é branco, de classe média, estudante universitário, mora na zona sul, trabalha em multinacional, sua vida vale muito mais que a do garoto negro de periferia. Pra morte negra ser valorizada, precisa estar inserida na linguagem das classes dominantes, tocar violino, ser evangélico, como uma flor de lis no meio do lodo. Agora, se você for só um funkeiro saindo do baile e morre, isso é inerente à sua condição, não é lamentável. Você lamenta pelas vidas que valem a pena.
Que tipos de ações poderiam ser feitas para valorizar lideranças, intelectuais e profissionais das favelas?
Três coisas fundamentais: a primeira é a produção de equipamentos de qualidade. É óbvio que os garotos e garotas das favelas devem circular em outros equipamentos culturais da cidade, devem ter mobilidade. Mas a galera de outros espaços precisa também ir para equipamentos nas favelas. E não os temos. Em segundo lugar, precisamos de instituições que funcionem. As escolas têm que ter qualidade e equipes que efetivamente entendam que ali o trabalho deve ser de qualidade. Não adianta ter uma escola de qualidade se os professores acham que ali pode fazer uma politica pobre pra pobre. E você precisa ter investimento que leve em conta a participação e envolvimento das pessoas. Não pode ter um projeto civilizatório e achar que pode chegar lá e fazer as coisas como colonizador, apenas da maneira que você quer. Tem que reconhecer essa condição de sujeito das pessoas, porque elas são complexas. Não ache que elas não têm elaboração do ponto de vista da cultura racional, erudita, acadêmica, formal. Na simplicidade há muita complexidade, e isso tradicionalmente não é muito reconhecido.
Como se deu a sua aproximação com a Fundação Tide Setubal?
A aproximação em si começou com o convite para fazer parte do evento de dez anos da Fundação, em 2016, mas a gente já tinha tido um contato em uma palestra minha no Unicef em anos anteriores, onde conheci algumas pessoas que faziam parte da Fundação. Vi muita identidade desde o início, com as discussões sobre o território, e muita presença de conceitos que para nós, que observamos favelas, são valiosos.
Como avalia a sua entrada para o conselho da Fundação?
A entrada para o conselho foi uma grata surpresa, fiquei feliz com o convite. Acho que a Fundação está pensando em se ressignificar, em outros caminhos para construir a sua intervenção em territórios e periferias. Vejo que a organização está muito voltada para a questão dos direitos de moradores das periferias, passando pela questão racial, de gênero. São pontos muito importantes. Fiquei especialmente feliz por ser convidado a integrar o conselho com Sueli Carneiro. É o reconhecimento de duas pessoas negras de periferias, uma mulher e um homem, que podem estar contribuindo para um processo de repensar as estratégias da Fundação.
Me senti muito acolhido na primeira reunião, muito à vontade para falar um pouco da minha história, de como constituímos nosso trabalho. Por ser uma organização familiar, me senti integrante de uma instituição que é criada com muito cuidado e adesão de todos, isso me deu satisfação. Mais do que acolhido na dimensão institucional, me senti acolhido pela galera que está muito a fim de contribuir, que acredita que a periferia, os negros e as mulheres devem ter mais espaço para suas realizações[FN1] .
Como você espera contribuir para a Fundação Tide Setubal?
Sou intelectual, trabalho no mundo das ideias e dos conceitos, sou empreendedor social, sou ativista, pesquisador, escritor, produzo teorias e conceitos sobre as periferias. Nesse sentido, acredito que há uma discussão teórica que é diferenciada por ser fruto da minha vivência, minha história, minha inserção. Ter uma identidade negra, nordestina, efetivamente favelada, faz com que as formulações conceituais sejam inovadoras em muitos aspectos. Isso pode contribuir para que a Fundação Tide Setubal amplie suas possibilidades de enxergar as situações em territórios populares.
Vejo que tanto o Instituto Maria e João Aleixo como a Fundação Tide Setubal buscam a construção de redes de troca e apoio, me parece uma coisa muito forte. Temos em comum a perspectiva de construir um trabalho de maior envergadura e abrangência, que gere novas formas de compreender o espaço popular em uma perspectiva internacional, formando quadros, empreendedores, lideranças, metodologias e tecnologias sociais. Temos muito a aprender, a ouvir e a compartilhar um com o outro.