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Quando o poder judiciário não é capaz de representar a sociedade, há muitos problemas de reforço na cultura racista – Fundação Tide Setubal entrevista Lígia Batista

Programas de influência

19 de novembro de 2021
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A impressão que se tem ao olhar para o sistema judiciário brasileiro é de que pessoas pretas e pardas representam uma minoria no país. Apesar de 56% da população ser negra, a sub-representação desse grupo é gritante.

 

De acordo com a Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 30% dos servidores, 12,8% dos magistrados e 33,9% dos estagiários do poder judiciário são, respectivamente, negros.

 

Desse modo, falar sobre ações afirmativas e projetos para promover a chegada de pessoas pretas e pardas a esses espaços é urgente. Dentro desse cenário, alguns destaques são a Resolução CNJ n° 203/2015, que determina a reserva de 20% de vagas em concursos públicos para cargos efetivos e da magistratura para profissionais negros, e o Edital Traços, iniciativa da Plataforma Alas desenvolvida para fortalecer a trajetória profissional, educacional e pessoal de lideranças negras com trajetória periférica.

 

Esse e muitos outros aspectos resultantes do racismo estrutural e institucional devem ser debatidos todos os dias, inclusive no Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Para falar sobre o tema, a Fundação Tide Setubal entrevistou Lígia Batista,  diretora executiva do Instituto Marielle Franco*.

 

Confira o diálogo a seguir.

 

 

Cerca de 13% dos magistrados são negros, enquanto 20% são brancos e têm familiares com histórico na magistratura. Esse quadro retroalimenta a desigualdade racial no Brasil?

Lígia Batista: Absolutamente. É importante dizer o quanto esse dado deveria chocar a sociedade. Mais do que chocar, provocar as instituições a de fato pensarem sobre os problemas decorrentes dessa disparidade. A disparidade racial nos quadros do judiciário é um sintoma e um motor das desigualdades. No campo simbólico, enxergar o poder judiciário como uma instituição dominada pela branquitude e um lugar que, dada a ausência de negros em seus quadros e posições importantes, como promotores, juízes e inclusive como advogados e defensores, fortalece a mistificação sobre o lugar do negro: ele é percebido como alguém que não tem nenhum outro papel nesse sistema exceto o da figura criminalizada pelo poder judiciário.

 

Há o reforço de uma cultura racista, que encurrala a imagem e a existência do negro em diversos papéis entendidos pela subalternidade ou algum nível de exploração. Se pensarmos nas mulheres negras, há um texto da Lélia Gonzalez, dos anos 1970, sobre racismo e cultura na sociedade brasileira na qual ela traz duas dimensões ainda muito colocadas nos dias atuais: a imagem da mulata no carnaval e da empregada doméstica. Homens negros estão associados ao subemprego, desemprego ou à criminalidade. Quando o poder judiciário não é capaz de representar essa sociedade, há muitos problemas de reforço na cultura racista.

 

Do ponto de vista prático, o Direito não pode ser percebido como uma ferramenta neutra. Mesmo apresentado como uma ferramenta para promover mudanças e defender pessoas, ele acaba servindo para reforçar uma visão de justiça que reflete as disparidades debatidas sob ponto de vista de raça, classe e gênero. Falar da relação intrínseca e direta entre a vinculação das elites à composição do poder judiciário é falar da sua exploração para mantê-las no poder e o que significam as outras instituições. Ao pensar na política nacional e nas comunicações, isso estará igualmente colocado, assim como nas posições de poder que determinam os rumos do Brasil. Um poder judiciário dominado pelas elites brancas serve a elas.

 

De que forma o cenário que traz 20% de pessoas que têm uma história familiar no judiciário contribui para o racismo?

Lígia Batista: Esse dado deveria ser tão assustador para pensarmos sobre o sistema de justiça. Pude estudar com pessoas que tinham mãe, pai, avós e bisavós em uma mesma instituição como promotores, juízes, autores de livros celebrados na formação em Direito. Não consigo entender como nunca discutimos de maneira institucional o incômodo do ranço colonial que carregamos de maneira profunda É absurdo poucas pessoas concentrarem renda, poder e vários privilégios – e elas ditam as regras do jogo. Dificilmente a roda girará de modo diferente se não passarmos a promover estratégias, ações e mecanismos para a diversidade chegar e questionar o status quo.

 

O ranço colonial nas instituições jurídicas é uma vergonha não no ponto de vista da formação de advogados e juristas, que não leem um autor negro, não têm um professor negro na universidade e vivem uma experiência de quem está no Reino Unido – parece não se tratar de um país majoritariamente composto por pessoas negras. Há muitos intelectuais negros fazendo provocações fundamentais sobre o papel do sistema de justiça para a reprodução dessas desigualdades. Ainda assim, há processos formativos baseados no ranço colonial e na necessidade de adotar visões sobre o significado do Direito distantes da realidade brasileira.

 

Se não rompermos em cada uma dessas fases com esse ranço colonial, não conseguiremos andar para frente e refundar as bases que fazem o Direito servir às elites econômicas, políticas e raciais. Devemos nos questionar sobre o significado das nossas ideias de justiça, sobre o que o Direito representa nas vidas das pessoas, como os processos formativos e de qualificação de profissionais e juristas no Brasil funcionam e como estão marcados por essa disparidade racial em tudo o que a gente olha, na ausência de professores e autores negros, de diversidade na reflexão do que o Direito é e deveria ser.

 

De qual maneira iniciativas como o Edital Traços são significativas para reverter o quadro de racismo estrutural e institucional na esfera judiciária?

Lígia Batista: O Edital Traços é um importante passo para se chegar à reversão do quadro. Muita coisa precisa ser feita para transformar esse cenário. Não será possível mudar em um ou dois anos, pois tratamos de temas que remontam aos tempos da escravidão. Entendo que o Edital Traços serve como uma ferramenta para, cada vez mais, gerar oportunidades de fortalecimento de lideranças negras nesse setor. A importância para promover a ocupação de espaços como o judiciário é muito grande. Quando trabalhamos a dimensão das desigualdades raciais, jamais devemos perder de vista o peso e a relação existentes das desigualdades raciais com as socioeconômicas. Há N condições de precarização da vida negra no Brasil e impactos significativos para quem decide almejar uma carreira jurídica.

 

A trajetória de formação em Direito no Brasil é, por si só, extremamente cara mesmo quando se fala de quem acessa as universidades públicas, pois é necessário comprar livros caros, deslocar-se para ir à universidade e alimentar-se, e nem sempre o auxílio permanência é uma política que consegue ser acessada por quem precisa para se manter nesses espaços. Após concluir esse processo – falo por experiência própria, por eu mesma ter passado pela formação em Direito e visto de perto essa realidade -, fica ainda mais difícil se qualificar, fortalecer e buscar pelas carreiras jurídicas, pois a qualificação para os processos seletivos no poder judiciário e em outras carreiras jurídicas demanda capacidade financeira.

 

A oportunidade oferecida pelo edital, inclusive de forma bastante flexível, permite juristas negros a poderem desenvolver um plano próprio de desenvolvimento profissional de forma bastante autônoma e aberta, e oferecendo os recursos necessários para concretizar esse sonho – acho que promoverá profundas diferenças daqui para frente. É uma primeira tentativa de chamar a atenção da sociedade para esse problema. Ele traz essas provocações à mesa, para as instituições que detêm muito poder, como as que compõem o ISP, refletirem e reconhecerem qual é o papel para promover transformações.

 

Qual é o papel do ISP na preparação de profissionais negras(os) para o ingresso na carreira jurídica e para combater a disparidade racial nessa esfera?

Lígia Batista: O campo do ISP tem muito poder nas mãos e é marcado pela dominância branca também nos processos de decisão. Tenho pensado bastante sobre como é muito importante que essa branquitude, que dá sentido e define as direções e estratégias dentro da filantropia, precisa ser consciente sobre o lugar de privilégio e refletir sobre a importância de colocar o seu capital político e os seus recursos disponíveis a serviço da transformação desses cenários.

 

O ISP tem uma capacidade muito importante: circular por diversas mesas de poder, sentar junto a instituições extremamente poderosas, incidir sobre essas instituições e provocar constrangimento junto a elas – acho que são fundamentais para provocarmos transformações. Acho que o constrangimento é uma das ferramentas fundamentais para promover transformações necessárias. Sem o constrangimento, as elites brasileiras continuarão nas suas cadeiras de poder com o conforto que sempre possuíram, além de que nunca se questionarão ou serão questionadas sobre a necessidade de revisitar o que significa a sociedade brasileira, como ela está conformada e quais são os impactos negativos de se promover uma verdadeira distorção do papel do judiciário e do senso de justiça para o Brasil.

 

O ISP deve cada vez mais colocar a serviço da promoção do ingresso na carreira jurídica para pessoas negras as suas redes, recursos financeiros e capacidades de qualificação técnica de profissionais e de pessoas, para revertermos essa situação. A sociedade civil está nesse lugar e deve sempre questionar e provocar o poder judiciário a entender a necessidade de adotar ferramentas para, cada vez mais, desafiar e desconstruir a disparidade racial colocada dentro do poder judiciário – e trazer para um lugar de maior diversidade, do ponto de vista racial, a participação de negros e negras nessas instituições.

 

Em paralelo, quais medidas você considera necessárias para mitigar a disparidade racial na esfera judiciária?

Lígia Batista: Há coisas e debates acontecendo. Estamos nos articulando para debater, em particular no ano que vem, as políticas de ações afirmativas, que tiveram papel histórico e fundamental para pessoas negras acessarem um espaço de qualificação profissional que permita novos projetos de vida e consolidar sonhos. Pensar em mitigar a disparidade racial na esfera judiciária passa sobre como o poder judiciário deve refletir para avançar na noção de ações afirmativas das mais diversas naturezas. As instituições e as lideranças desses espaços devem abrir espaço e refletir sobre o significado do racismo institucional e como ele está colocado dentro delas.

 

A responsabilidade de promover esse debate não deve ser só de pessoas negras. As lideranças dessas instituições devem fazer espaço para o debate sobre o racismo institucional e adotar medidas concretas. Faz muita falta a sociedade brasileira internalizar e reconhecer o papel do racismo e como ele opera nas nossas relações, assim como quais ações devem ser adotadas nas mais diversas esferas para, em um futuro próximo, dizermos que o racismo está superado e que pessoas negras possam viver de forma plena os seus sonhos, as trajetórias profissionais e suas vidas. A mitigação passa por um debate franco e aberto, pelo reconhecimento do papel do racismo institucional na esfera judiciária, e por ações concretas que sirvam de maneira efetiva para enfrentar a desigualdade racial e o racismo dentro dessas instituições.

 

 

Saiba mais

+ Qual é a proporção de pessoas negras na magistratura brasileira?

 

 

 

Entrevista: Amauri Eugênio Jr.

 

 

 

*A entrevista foi atualizada em 18 de dezembro de 2023, para menção do novo cargo de Lígia Batista.


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