Como lidar com os desafios complexos que marcam o dia-a-dia das grandes cidades? O que fazer para superá-los em busca de uma sociedade cada vez mais igualitária, justa e sustentável? A resposta pode estar ali, bem próxima: nos territórios.
A valorização dos ativos locais, a escuta atenta aos anseios da população, o fomento à participação crítica dos cidadãos, o sentimento de pertencimento às cidades e a promoção de políticas públicas que levem em consideração as especificidades dos diferentes espaços parecem ser caminhos interessantes na busca por uma transformação social.
Essa é a aposta dos vários especialistas que participaram das discussões promovidas no Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca da equidade, realizado em São Paulo (SP), no dia 14 de junho, pela Fundação Tide Setubal, em parceria com o jornal Folha de S.Paulo. O evento faz parte das comemorações aos 10 anos de atuação da organização, principalmente em São Miguel, zona Leste de São Paulo.
Ao longo do dia, as várias conferências e mesas de debates promovidas buscaram destacar os vários avanços já conquistados por meio da criação de políticas públicas, mas também o fato de que os serviços e programas continuam sendo sistematicamente insuficientes, mais precários e de pior qualidade em áreas de alta concentração de pobreza.
“Os avanços que queremos para a área social, econômica e ambiental só se efetivarão com políticas públicas implementadas de acordo com a história, os valores e as características de cada localidade. Por isso, o território importa”, enfatizou Maria Alice Setubal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e uma das criadoras da fundação familiar, na abertura do encontro.
“E é justamente essa relação profunda com o território o principal direcionador da Fundação. É um novo olhar a partir da realidade local, com a possibilidade de descobrir o belo, o inusitado, de abrir-se ao diálogo”, completou.
Neca, como é conhecida, ressaltou que a criação de vínculos fortes de confiança com o território, a partir de um olhar sistêmico, multidisciplinar e interssetorial para realizar as ações, superando a cultura do assistencialismo, trouxe resultados positivos para São Miguel e ao trabalho que vem sendo feito pela Fundação nestes dez anos.
Entre os eixos que norteiam atuação da organização estão também a escuta, a integração com o espaço público, a participação e mobilização como forma de emancipação e autonomia, além da importância da formação e do letramento para abertura de novos caminhos e possibilidades de liberdade de escolha.
“Essa maneira de atuar vem ao encontro dos desejos da população, de não submissão. Vemos na ação integrada e articulada de todas as instituições e dos recursos disponíveis a possibilidade de criar condições para um despertar de toda a população. E é preciso despertar no indivíduo a consciência de que ele é responsável pela comunidade”, ressaltou Maria Alice, lembrando a fala de sua mãe Tide Setubal.
Ainda no início do seminário, Maria Alice enfatizou que, diante da crise econômica, política e social pela qual o país passa, será preciso coragem e ousadia de todos para efetuar de fato as mudanças necessárias, preservando as conquistas e avançando no desenvolvimento sustentável.
A voz da cidade
Na conferência de abertura do seminário, a socióloga holandesa Saskia Sassen, referência mundial na área da sociologia urbana por suas análises sobre os fenômenos da globalização e da migração urbana, discutiu sobre as novas configurações metropolitanas e a importância do território para as políticas públicas urbanas.
Saskia destacou a necessidade de se redescobrir o que são de fato as cidades. “Precisamos proteger o conceito de cidade, pois ela nos transforma em sujeitos urbanos. Uma imagem que representa isso é a hora do rush, em que todos tentam pegar um trem. Há uma mistura e aproximação de classe, raça etc. Nesse momento somos todos sujeitos urbanos”, ressaltou, enfatizando que é preciso ouvir a cidade, pois ela tem voz.
“Mas nós perdemos a capacidade de entender como a cidade, com a complexidade do espaço, pode falar conosco e transformar as coisas. Um exemplo é o carro super potente que, quando chega ao Centro da cidade, deixa todos os seus potenciais e anda como uma bicicleta. Aí a cidade falou”.
Saskia chamou atenção ainda para o fato de que nas metrópoles há um fenômemo de desurbanização do espaço, com a chegada de complexos empresariais que ocupam boa parte de um território, eliminando as ruas, vielas, praças etc. “Há, portanto, um impacto direto na vida dos cidadãos, pois a cidade é um local onde as pessoas sem poder aquisitivo também podem ter história, cultura e gerar economia, mesmo que seja numa comunidade específica. E isso não é possível de se fazer dentro de um empreendimento. Assim, quanto mais projetos de grande porte, mais essa possibilidade é tirada das nossas mãos”, enfatizou.
Território em pauta
Ao longo do dia, foram realizadas quatro mesas de debate a fim de discutir diferentes perspectivas a respeito dos territórios.
A primeira delas – “Do caos urbano à cidade sustentável” – contou com a presença de Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP); Aldaiza Sposati, professora do Centro de Estudos de Desigualdades Socioterritoriais da PUCSP; e Ricardo Sennes, coordenador do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP.
“Uma cidade só é cidade se ela for composta por uma imensa e crescente diversidade. É essa dinâmica que a caracteriza e não a homogeneidade. A cidade é uma espécie de colizão de partículas e formas”, explicou Abramovay.
De acordo com os especialistas, será preciso fortalecer mais os territórios, com um olhar focado nas potencialidades locais e a criação de novos arranjos econômicos, para a superação das muitas desigualdades que ainda persistem e se mostram nas diferenças dos índices sociais entre os bairros nas cidades.
“Se continuarmos concentrando as oportunidades em ‘manchas urbanas’ será pouco eficaz não só do ponto de vista econômico, mas social. Por isso, devemos incorporar no planejamento urbano das grandes cidades brasileiras a dimensão da competitividade econômica, tornando diversos pontos da cidade competitivos, descentralizando o desenvolvimento e gerando valor agregado em várias áreas”, enfatizou Sennes.
Na opinião de Abramovay, se faz urgente a população discutir qual é o modelo de crescimento que se quer para as cidades, garantindo que a ocupação dos territórios não marginalizem mais os cidadãos, como apontou os dados do Mapa da Exclusão/Inclusão Social, apresentado por Aldaiza Sposati. “Temos em São Paulo uma centralidade de oportunidades em algumas áreas e muitas ausências em várias outras. Há uma insustentabilidade social do cotidiano na metrópole”, alertou a especialista.
Já a mesa “Conexões culturais: encontros e desencontros na cidade” destacou experiências da academia e da própria sociedade civil que dão luz às desigualdades materiais e simbólicas que vivem estes territórios. Em debate, três palavras centrais: juventude, periferia e expressões culturais.
Regina Novaes, doutora em antropologia social e pesquisadora sobre religião e políticas públicas para juventude, explicou que a questão territorial é definitiva. “Hoje falamos em discriminação por endereço. Dizer onde mora pode fechar portas, oportunidades e potencialidades”, disse, destacando a importância da cultura nos territórios periféricos. “Cultura da periferia é um termo carregado de sentido – é um processo que procura transformar estigma em emblema”.
E são experiências como a do Sarau do Binho, criado pelo poeta Robinson Pedial, que tem trazido à tona a riqueza desta cultura. Na ocasião, Binho contou sobre a criação do sarau e as mudanças que essa ação cultural provocou na comunidade. “A ideia do sarau surgiu dentro de uma lanchonete que eu tinha no Campo Limpo. Sempre gostei de ler e comecei a introduzir as poesias em algumas noites. Nessa época, nos anos 90, os Racionais MC estavam bombando e a nossa ideia pegou. A autoestima da periferia estava se transformando”.
Também na parte da tarde do Seminário, a mesa redonda “Apropriação do espaço público e o direito à cidade” trouxe à tona a discussão sobre o pertencimento das pessoas ao território público. Jailson de Souza e Silva, do Observatório das Favelas, levantou a questão sobre a mobilidade plena, que vai muito além da mobilidade fisica.
“As pessoas têm que sentir que os espaços da cidade pertencem a elas e elas pertencem à cidade. Não é só uma questão de se movimentar, de circular”, disse, questionando ainda o porquê da sociedade ainda não reconhecer a produção da periferia, o que impacta diretamente na busca por outro tipo de cidade. “Por que os jovens de classe média tem cada vez mais processos inventivos, e para periferia ainda optamos por cursos de padeiro? Temos que reconhecer isso pra produzir uma cidade melhor”.
Pablo Maturama, da agência metropolitana de Medellín, na Colômbia, falou sobre as transformações da cidade ao longo de mais de três décadas com a integração popular por meio da cultura, educação e transporte, e como a participação influencia nos resultados das ações. “Sem a participação social, muito do que foi feito em termos de mobilidade não seria possível”, ressaltou.
Para finalizar, Christian Dunker, da Universidade de São Paulo (USP), trouxe o olhar da psicanálise para este contexto, destacando que o ‘diálogo’ na cidade pode servir de cura para os males atuais. “Mais do que circular, é preciso dialogar, se abrir ao indeterminado”.
Na última mesa – “A voz do jovem na mobilização social” – os participantes destacaram que o Brasil tem construído uma nova forma de participar, mobilizar e fazer política, tendo a juventude um papel fundamental neste processo.
A cientista social Beatriz Pedreira apresentou alguns dados a respeito da pesquisa Sonho Brasileiro da Política, ressaltando a importância que as mobilizações de 2013 tiveram para a nova geração, sendo um marco simbólico para a sua vida, mas que as formas de atuar politicamente são diversas.
“Vimos que hoje o que mobiliza a juventude são causas que não estão nos partidos. Há, assim, pontos de desconexão entre a política institucional e como eles atuam politicamente. O jovem não consegue se aproximar destas instituições porque a forma como elas se organizam não dialogam com a sua realidade. Assim, ele passa a criar a sua maneira de atuar. Não que ele esteja negando os partidos, ele até reconhece, mas essa forma de fazer política não lhe representa”, explicou.
Neste contexto, as novas tecnologias têm sido ferramentas essenciais para conectar, aproximar e ativar redes para tal, como é o caso da Meu Rio, que une jovens que queiram participar mais ativamente nas questões da cidade por meio de ferramentas digitais.
Alessandra Orofino, co-fundadora da Meu Rio, ressaltou, porém, que é preciso ir muito além dos dispositivos digitais e fazer política no dia-a-dia, com pressão social. “Não se mexe em nada dentro dos gabinetes se não tivermos uma pressão de fora batendo todo dia em sua porta. As pessoas precisam de espaço para trabalhar e a opinião pública ajuda esse representante a conseguir o espaço que precisa e construir políticas públicas. Não podemos negligenciar isso”, disse.
Para os especialistas, o momento é de união em torno de lutas coletivas e de olhar para as novas tendências. “Podemos ser extremamente diferentes, mas a luta conecta, pois algumas causas são de todos. Precisamos também pensar para quem a nossa luta está sendo relevante e o quanto do nosso tempo estamos a elas”, questionou Tony Marlon, criador da Escola de Notícias, instituição de comunicação e empreendedorismo comunitário, no bairro do Campo Limpo.
O jornalista finalizou ainda destacando que o “2013” acontece todos os dias nas periferias, que se movimenta e transforma, e que é preciso reconhecer as potencialidades existentes que estão ainda às margens: “Periferia para quem? A partir de qual perspectiva?”, questionou.
Educação em debate
“Políticas educacionais: a universalização produz igualdade nos territórios?” foi o tema da conferência de encerramento do evento, com a participação de Choukri Ben Ayed, professor do Departamento de Sociologia da Université de Limoges, da França.
O educador compartilhou a experiência do país nas relações entre educação, territórios e espaço urbano. Segundo o sociólogo, a França, apesar de ter universalizado a educação há décadas, ainda se depara com uma série de dificuldades em promover a inclusão de fato dos estudantes diante da complexidade das questões sociais que interagem com o ambiente escolar.
Choukri, inclusive, destacou que apenas recentemente o país passou a olhar de forma mais profunda a relação e o impacto da pobreza na educação de suas crianças e jovens. Segundo o sociólogo, diante do cenário que veio à tona – com uma discriminação clara de questões étnicas, raciais e sociais – mudanças foram realizadas ao longo dos anos na política educacional.
“Durante muito tempo os estudiosos denunciavam o fenômeno da segregação, mas o Estado preferia ignorar essa questão. E isso se desenvolveu como uma doença no seio do sistema educacional”, comentou.
Entre as políticas criadas houve um período de flexibilização da carga escolar, o que gerou mais segregação ao invés de resolvê-la e, mais recentemente, foi criada uma lei para refundar a escola pública, a fim de garantir a diversidade social. “Passamos da negação de um problema para um reconhecimento público e inserção na lei. Mas agora é preciso ir além”, disse, tendo em vista os diversos desafios ainda existentes no país para lidar com as minorias, que não são, inclusive, estrangeiras.
“Não bastam as leis. Precisamos avançar produzindo estatísticas sobre a questão da discriminação e as minorias étnicas. A França é cega para este tema. Mas como falar em pertencimento comum e minorias ao mesmo tempo?”, indagou.
Convite à inovação
No fechamento do seminário, Maria Alice Setubal destacou que a escolha por terminar o dia com o tema de educação não foi por acaso, tendo em vista a sua importância para a superação dos grandes desafios mundiais, e que é preciso pensar o território do século XXI, com o olhar para a inovação.
“O dia de debates nos mostrou a necessidade do diálogo, do reconhecimento e da convivência com as diferenças. Precisamos nos abrir para ouvir o outro. Estamos vivendo no Brasil em uma situação política e economicamente complicada que exige da gente mais compromisso nesse diálogo”, finalizou.
Maria Alice destacou ainda o sucesso do evento, que coroa os dez anos de trabalho da Fundação. “Os debates do seminário nos mostram que nossa atuação está no caminho certo, construindo uma relação com a comunidade, focando no diálogo e intermediando as políticas públicas. É claro que ainda há muito a se fazer, mas ficamos felizes em estar na direção correta”.
Materiais
Os interessados em acompanhar os debates podem acessar o site do seminário e assistir aos vídeos. (http://www1.folha.uol.com.br/especial/2016/cidades-e-territorios/)
No dia 18, a Folha de São Paulo irá lançar um caderno especial sobre o tema e, em breve, a cobertura completa do evento estará disponível no site da Fundação Tide Setubal.