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Muito além da transferência de renda

@Comunicacao

24 de junho de 2008
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O sucesso alcançado pelo Bolsa Família – programa do Governo Federal de transferência direta de renda a famílias em situação de extrema pobreza – trouxe para o debate público alguns elementos importantes.

 

Embora a real dimensão dos impactos do programa brasileiro ainda esteja sendo medida por diversos organismos e centros de estudos nacionais e internacionais, é incontestável que os programas de transferência condicionada de renda contribuem decisivamente para a diminuição da desigualdade social. No Brasil, estudos iniciais apontam que esses programas foram responsáveis por um quarto da diminuição da desigualdade social de 2001 a 2005.

 

Entretanto, fica cada vez mais claro que, apesar dos benefícios já alcançados, especialmente na promoção do alívio imediato da pobreza, esses programas têm limites, uma vez que isolados não conseguem tirar de fato e de forma estrutural as famílias do ciclo de pobreza a que estão submetidas geração após geração.

 

Alterar essa lógica, de modo a se alcançar impactos sustentáveis na reversão do vergonhoso patamar a que a pobreza chegou, em nosso país e em diversas partes do mundo, talvez seja o maior desafio da sociedade contemporânea.

 

Um avanço nessa direção é o consenso de que as causas da pobreza são complexas e possuem determinações multifatoriais, exigindo assim uma variada gama de ações para enfrentá-las.

 

A geração de emprego e renda e a elevação dos níveis educacionais parecem ter alcançado um patamar de consenso no campo das soluções. Já transferência de renda diretamente às famílias pobres – medida muito mais eficaz do que o emprego de mecanismos indiretos de subsídios de preços – e o condicionamento do repasse dos recursos ao cumprimento de metas como freqüência escolar e visitas a postos de saúde têm se mostrado elementos decisivos, porém insuficientes, no combate à pobreza. É preciso ir além.

 

É por essa razão que programas inovadores, alinhados com as novas políticas no campo da assistência social, têm buscado trabalhar tanto as dinâmicas e relações intrafamiliares, como a relação da família na comunidade, procurando apreender, ao mesmo tempo, a dimensão da subjetividade, da individualidade, e a dimensão do coletivo, do agir em um determinado território. Mas o que esses termos significam na prática cotidiana das famílias pobres? Como se pode traduzi-los em ações concretas a serem implementadas?

 

Obviamente as respostas a essas questões não são simples e devem levar em conta um conjunto de fatores interdependentes. Devido ao reduzido espaço desse texto, destaco três desses fatores que considero fundamentais por estarem ao alcance de qualquer política ou programa social, desde que pensados e implementados com seriedade.

 

O primeiro diz respeito à construção de vínculos de confiança com as famílias, condição sine qua non para o desenvolvimento de quaisquer novas ações que objetivem sustentabilidade. Vínculos podem ser construídos por meio de ações corriqueiras como saber ouvir, compreender e levar em conta as histórias, os valores culturais e os modos de ser e sentir de cada família. Tarefa simples, porém delicada. Isso porque é preciso entender melhor o universo de quem vive em alta vulnerabilidade social, em que pessoas muito sofridas tornam-se desesperançadas, por serem excluídas de uma participação cidadã, por se sentirem desrespeitadas em diversos aspectos de sua vida cotidiana. Uma vida absolutamente presa ao território, com perspectivas mínimas de mobilidade, mesmo quando vivida em uma grande cidade. Para criar vínculos com essas pessoas é também necessário olhar e entender aspectos que fazem parte de uma cultura baseada na oralidade, na reduzida capacidade de abstração e planejamento e, muitas vezes, fundada na passividade e na pouca participação, embora recheada de afetividade.

 

Evidentemente que esses são aspectos subjetivos. Eles só adquirem concretude e revelam suas diferentes tonalidades no contato próximo com as famílias, por isso mesmo são aspectos que só podem ser captados em visitas domiciliares, periódicas e realizadas pela mesma equipe, sem uma preocupação exclusiva com o preenchimento de cadastros que tornam a conversa burocrática, incolor e sem uma vivência narrativa.

 

Paralelamente aos aspectos mais subjetivos, os vínculos de confiança são criados com ações visíveis e concretas relativas à saúde, à educação e à melhoria da qualidade de vida das famílias e da comunidade. No entanto, só são consolidados com o respeito de ambas as partes aos compromissos firmados. As ações pactuadas devem ser realizadas no prazo estipulado e as contrapartidas de participação das famílias, estabelecidas previamente, devem ser cobradas. Só assim caminha-se no sentido da autonomia e não da tutoria.

 

O segundo aspecto a ser considerado é a importância do conhecimento da microrregião onde se atua, não só com o levantamento de todos os equipamentos públicos e privados existentes no território, mas com a discussão sobre os tipos de serviços que são oferecidos, como devem ser demandados, sua importância e os direitos das famílias a um atendimento de qualidade. Isso pressupõe uma articulação com as lideranças locais, associações de moradores, organizações não-governamentais, governos regionais, empresas privadas, de tal modo a se conscientizar a comunidade de que a vulnerabilidade e a precarização das condições de vida na microrregião é uma responsabilidade de todos. Assim, se as famílias em maior vulnerabilidade alcançarem um novo patamar de qualidade de vida, todos que residem e atuam naquele território serão beneficiados.

 

Essa é uma tarefa longa, que exige tempo de conversação, concessões, ajustes, muita boa vontade e desprendimento para se chegar aos consensos que permitam a eliminação da sobreposição de serviços e a duplicidade de funções. É preciso uma mudança na lógica da atuação e de gestão da coisa pública, de modo a se tornar mais transparentes as políticas, as informações e, principalmente, o acesso aos equipamentos e serviços. É necessário também considerar as parcerias entre o público e o privado, incluindo ai os serviços e equipamentos ligados a ONGS, fundações e instituições do Sistema S (Sesi, Sesc, Senai).

 

O terceiro e último aspecto é a constituição de equipes competentes, bem qualificadas e compromissadas com as políticas sociais de sustentabilidade. Essa é uma condição essencial para que tudo o mais possa acontecer, o que determina a necessidade de programas de longo prazo, recursos para salários dignos, capacitação continuada, supervisão e avaliação. Projetos aligeirados, que não levam em conta essas condições básicas de implementação, têm sido a prática comum não só de diferentes governos, como também de muitas organizações da sociedade civil. Além de se configurar um lamentável desperdício de recursos com pífios resultados, essa prática acaba por ampliar o descrédito da população pobre, calejada pela desesperança, contribuindo para o seu imobilismo e passividade. E aqui vale ressaltar que não cabe mais à assistência social a primazia no desenvolvimento de projetos com famílias. Começa a se formar um consenso de que são necessárias ações multidisciplinares, que trabalhem de forma integrada as diferentes instâncias – saúde, educação, assistência social, cultura, esportes, psicologia -, potencializando assim a eficácia das ações e os impactos gerados.

 

Transferir renda diretamente aos pobres tem se mostrado um mecanismo extremamente eficiente no enfretamento da pobreza. Entretanto, ele sozinho é absolutamente impotente diante do tamanho e da complexidade do desafio que temos pela frente.

 

Reduzir a desigualdade social exige compromissos e a participação de todos. Para isso, um caminho profícuo pode ser a adoção de princípios e valores essenciais ao ser humano, como justiça e generosidade, tantas vezes deixados de lado nos dias atuais. No estabelecimento de parcerias, justiça e generosidade podem fornecer parâmetros para que realmente sejamos capazes de ouvir e levar em conta o ponto de vista do outro, respeitá-lo, construir um diálogo enriquecedor e assumir posições claras e transparentes, em que o interesse coletivo seja realmente o eixo das ações. Não temos mais tempo a perder. Se o começo já passou, é sempre possível construir um final diferente.


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