Quanto maiores os níveis de vulnerabilidade social da vizinhança da escola, mais limitada tende a ser a qualidade das oportunidades educacionais oferecidas. Esta é a principal conclusão do estudo Educação em territórios de alta vulnerabilidade social na metrópole, uma iniciativa da Fundação Tide Setubal, em parceria com a Fundação Itaú Social e o UNICEF e com coordenação do CENPEC.
A pesquisa mostra que, em escolas em áreas mais vulneráveis, somente 10% dos estudantes têm desempenho adequado. Quando o entorno não é vulnerável, essa porcentagem é de 24%. Os dados foram coletados num universo de 61 escolas públicas da região da subprefeitura de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo (SP), que atendem 88 mil alunos.
Realizado entre 2009 e 2010, o estudo teve como base o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2007, as notas da quarta série do ensino fundamental da Prova Brasil de Língua Portuguesa de 2007 e o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, da Fundação Seade. O cruzamento dos dados revelou também que alunos com o mesmo nível sociocultural apresentam desempenho escolar diferente de acordo com a localização da escola onde estudam.
A partir da análise, a pesquisa detectou cinco mecanismos por meio dos quais se dá a relação entre aprendizagem e território nas áreas vulneráveis. São eles: isolamento da escola no território; baixa oferta de matrícula na educação infantil; composição sociocultural homogênea dos alunos; desvantagem na disputa por profissionais e alunos; e inadequação do modelo institucional escolar.
Esses processos são detalhados na entrevista a seguir por Antonio Batista, coordenador da área de desenvolvimento de pesquisas do CENPEC, e por Mauricio Érnica, consultor da Fundação Tide Setubal e coordenador da pesquisa. Ambos também discorrem sobre aspectos que devem ser considerados na formulação de políticas públicas para territórios vulneráveis. Confira:
Quais as motivações para essa pesquisa sobre educação em territórios vulneráveis?
Érnica: em 2008, a Fundação Tide Setubal observou indicadores de São Miguel, para entender melhor seu território de atuação. Ao colocá-los sobre o mapa do Índice de Vulnerabilidade Paulista, apareceu uma correlação clara: os territórios mais vulneráveis apresentavam um Ideb mais baixo do que a média da região.
Também estava nas agendas dos parceiros aquestão educacional nas metrópoles, porque, no Brasil, elas tendem a ter Ideb mais baixo do que das cidades médias e pequenas dos seus arredores. São Paulo, por exemplo, tem Ideb menor do que São José dos Campos. Além disso, outro problema afetava os parceiros: a dificuldade de haver projetos com impactos expressivos nas áreas metropolitanas. Frente a este quadro, resolvemos compreender melhor o problema, tendo como horizonte a afirmação do direito à educação de qualidade para todos.
Batista: esse tema tem sido objeto de estudo no campo acadêmico. Na última década, tornou-se extremamente importante entender a influência do território na escola. Muitos estudos buscam as explicações, sobretudo, nas famílias. Ou seja, grande parte do efeito do território viria do isolamento das populações, da segregação espacial e social. Nós buscamos entender o problema a partir dos processos escolares. Nossa pergunta foi: quais são os processos escolares presentes nas escolas que estão contribuindo para esses efeitos? Em outras palavras, o que há não só no território, mas também na escola, que favorece a ação do território sobre a escola?
O que surpreendeu nessa pesquisa e que não estava previsto na hipótese inicial?
Érnica:alunos que estudam em áreas menos vulneráveis têm resultados melhores do que aqueles com perfil sociocultural semelhante, mas que estão nas áreas mais vulneráveis. Há um componente positivo neste dado. Há alunos com baixos recursos culturais que aprendem muito mais do que alunos semelhantes que se encontram em áreas menos favorecidas. Ou seja, a escola pode alterar, positivamente, a correlação condição sociocultural da família e desempenho do aluno.
Por que isso ocorre? Quais os mecanismos pelos quais o território vulnerável tende a restringir as oportunidades educacionais oferecidas pelas escolas nele situadas?
Érnica: há cinco porquês que explicam as desigualdades das oportunidades escolares e a influência do território na escola. O primeiro é o isolamento das escolas em territórios mais vulneráveis. Nessas regiões, a escola é o grande equipamento público de referência. Todos os problemas não atendidos pela população local, como saúde, segurança, moradia, invadem a escola, que não consegue se contrapor a isso. Assim, travam-se suas possibilidades de se organizar como escola, cujas atividades centrais são ensino e aprendizagem.
Teria um exemplo, para ilustrar, dessa invasão dos problemas?
Batista: as enchentes. Quando elas ocorrem, a escola interrompe suas atividades para receber as famílias que perderam a moradia. Outro exemplo são os jovens sem direito ao futuro. Para jovens de famílias que vivem uma situação de precariedade do mundo do trabalho, o que importa é o presente. Se os pais estão desempregados, eles tentarão encontrar uma fonte de renda. Podem ir menos à escola, porque o problema é mais urgente. Suas aspirações educacionais ficam reduzidas.
Outros dois mecanismos apontados são baixa oferta de educação infantil nos territórios mais vulneráveis e o perfil homogêneo dos alunos. De que forma esses fatores afetam o desempenho escolar? Como se relacionam com o efeito do território?
Érnica: a educação infantil é super importante para a continuidade da vida escolar. Nos território mais vulneráveis, além de muitas crianças não terem frequentado a educação infantil, são de famílias com baixos recursos culturais, pouco escolarizadas e, por isso, não conseguem transmitir alguns conhecimentos típicos do domínio da escola. Isso faz com que o grupo de alunos seja homogêneo. A escola, então, reúne estudantes com um universo mais distante da cultura escolar. Ou seja, no seu ingresso têm pouco domínio da cultura escrita e dos modos de se comportar na sala de aula. A tendência é que reproduzam o modo de vida, aspectos culturais, de comportamento e linguagem mais próximos da rua do que do universo da escola.
Batista: frequentemente, tais alunos resistem ao universo da escola. A alta concentração de estudantes com características parecidas potencializa os problemas. Logo, programas da rede pública que funcionam nas demais escolas não surtem efeito em escolas de regiões mais vulneráveis. Por exemplo: os programas de aceleração servem para uma escola que tem 10% de uma turma fora da curva de aprendizagem. Agora como se aplica esse programa para uma turma com mais alunos com dificuldades? Os problemas se tornam coletivos.
E como a escola enfrenta esses problemas? Como o professor pode fazer frente a essas questões?
Érnica: há uma tendência de se pensar a unidade escolar isoladamente, como se a escola pudesse dar conta, sozinha, dos problemas que estão lá dentro. Isso se relaciona ao quarto mecanismo que levantamos na pesquisa: as escolas mantêm relações muito fortes de concorrência entre elas, na disputa por profissionais e por alunos. Esse quase “mercado” faz com que algumas escolas sejam mais atrativas para profissionais qualificados e alunos com mais recursos culturais. São perfis que se adaptam mais às exigências e expectativas do modo de funcionar das escolas. Nesta disputa, escolas de territórios de alta vulnerabilidade estão em desvantagem.
Nesta parte da pesquisa, vocês falam em um efeito de território atuando sobre a escola, que é “exteriorização” e “decantação”. O que isso significa?
Batista: as escolas públicas têm mecanismos de seleção e de exteriorização, para recrutar alunos. Alguns deles nem precisam ser colocados em prática porque a própria localização já favorece a seleção, bem como a escolha dos pais. Outras escolas põem, de fato, certos empecilhos para a aceitação de matrícula de alunos que consideram “indesejáveis”. Há ainda mecanismos de permanência, como exigência forte por uniforme. Aqueles que não se adaptam às expectativas são induzidos, implicitamente, a sair da escola. É a exteriorização. O mesmo fenômeno ocorre com os profissionais de ensino. E também se dão adiante, em universidades.
Érnica: a decantação é a contrapartida da exteriorização. Há escolas que recebem os alunos indesejáveis daquelas que não os aceitaram. E essas escolas que os recebem se situam nas áreas mais vulneráveis, onde os problemas se canalizam. Quando não havia políticas de universalização, esses mecanismos de seleção e de exteriorização geravam a evasão escolar. Hoje, há escolas para esse público, porém não se garante o direito da educação de qualidade para todos.
Vocês listam como quinto mecanismo o modelo institucional inadequado. Como esse fator se relaciona com a questão da universalização das matrículas?
Érnica: no Brasil garantimos o direito à matricula universalizando um modelo de escola que atendia a um público mais restrito, com um universo cultural mais próximo da escola. Ou seja, replicamos o modelo sem discutir, antes, se ele era universalizável ou não. E ele não é. Demanda-se de alunos e profissionais um conjunto de características só mais facilmente encontrado nas escolas de entorno não vulnerável. Por exemplo, espera-se que o estudante ingresse na série inicial com certa familiaridade com a cultura escrita e que tenha internalizado modos de se comportar e relacionar próprios das atividades escolares, como ficar em silencio no período em que o professor está explicando o conteúdo. Este é o aluno ideal.
Batista: é preciso organizar as escolas para os alunos reais e não para um aluno ideal que não existe a não ser num modelo de instituição escolar que já deixou de existir desde que a escola deixou de ser um privilégio de poucos.
Érnica: o modelo que orienta as escolas não é adequado para fazer frente às especificidades dos territórios vulneráveis. Nestas regiões, as escolas não atendem aos requisitos para o funcionamento deste modelo, encontrando desafios enormes para se organizarem como espaço que realiza as atividades especificamente escolares.
Quais seriam as contribuições dessa pesquisa para a agenda das políticas públicas?
Érnica:em primeiro lugar, são necessárias políticas públicas específicas para as escolas situadas em territórios de alta vulnerabilidade. O direito à educação é universal, mas as formas de como realizá-lo podem e devem ser específicas, para combater as desigualdades. O segundo ponto é a integração entre as políticas: os problemas da educação não serão resolvidos exclusivamente com medidas educacionais. O terceiro aspecto é atenuar os efeitos da concorrência entre as escolas, favorecendo, ao contrário, a cooperação entre elas. O quarto ponto refere-se ao modelo escolar: não precisamos ter um modelo escolar adaptado aos alunos reais? Vale ainda discutir educação integral, currículo escolar e número de alunos por escola.
Em relação às políticas de mérito, como avaliam essa iniciativa?
Batista: o mérito é um ideal extremamente válido. Mas ele não pode ser usado sem levar em conta a desigualdade. Para que todos tenham a chance de ter mérito, é preciso que tenham oportunidades educacionais iguais.Essas políticas devem ser aprimoradas, não usadas para acirrar a concorrência entre escolas.
Érnica: com a pesquisa, vimos que os problemas da escola estão relacionados ao conjunto de relações fora da escola, mas que afetam a escola. Para avaliar um professor, é preciso considerar as condições em que desempenha seu trabalho. Precisamos responsabilizar o professor, para que cumpra seu compromisso. Entretanto, temos de reconhecer que ele realiza o trabalho sob determinadas condições. Os professores das áreas mais vulneráveis não são menos competentes, pelo contrário, mas há impedimentos ao bom trabalho docente. Ele, então, precisa de apoio, de uma rede de políticas para exercer melhor sua função.
Quais as próximas etapas da pesquisa?
Érnica: as famílias serão ouvidas. O objetivo é saber como as de áreas mais vulneráveis se relacionam, compreendem e dão sentido ao mundo da escola e da escolarização. Vamos avançar também nas questões de decantação, exteriorização e adequação ao modelo institucional.