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As pessoas só se importarão com as histórias caso se identifiquem com elas – Fundação Tide Setubal entrevista M.M. Izidoro

Falar sobre o combate às desigualdades sociais com quem não está sensibilizado sobre essa causa é um desafio grande. Há motivos de sobra para pensarmos nisso: falta de identificação e conexão com a mensagem transmitida, o formato e o estilo dos materiais veiculados. Até mesmo o acesso à internet tem influência para a mensagem tocar corações e mentes ou chegar truncada – isso se chegar.

 

Quebrar barreiras tecnológicas e emocionais é um ponto central do trabalho de M.M. Izidoro, autor e estrategista narrativo. Ele fala com propriedade quando o assunto é contar histórias e conectar-se com quem terá contato com ela, seja lendo, assistindo ou ouvindo. Mais do que desenvolver estilos narrativos para contá-las, Izidoro leva também em consideração o modo como as histórias são transmitidas, seja por causa das plataformas usadas, ou até mesmo pelo formato – no caso, online ou físico. Em resumo: ele também pensa em modos de subverter a rigidez de estruturas para a mensagem final chegar de modo efetivo e afetuoso ao receptor.

 

Alguns exemplos recentes de trabalhos nos quais M.M. Izidoro esteve envolvido são a campanha #EuEstou, voltada à conscientização sobre cuidados com a saúde mental; a série AmarElo Prisma, derivada do álbum homônimo do rapper Emicida, na qual o músico mostra novas perspectivas em uma jornada de transformação pessoal e social; e o podcast Casa Floresta, realizada pelo Instituto Socioambiental (ISA), na qual convidadas/os especiais são levadas/os para conhecer as comunidades e iniciativas onde o instituto atua.

 

Em entrevista à Fundação Tide Setubal, M.M. Izidoro fala de particularidades em seu trabalho, estratégias para causar empatia com a mensagem a ser transmitida e torná-la afetiva, e como “hackear” estruturas ajuda a potencializar tais objetivos. Confira o diálogo a seguir.

 

Quais ensinamentos os processos de desenvolvimentos dos trabalhos em que você esteve envolvido deixou quando se fala em comunicação de causas?

M.M. Izidoro: Estou me especializando em comunicação de coisas complicadas, seja prevenção de suicídio e saúde mental. O primeiro grande projeto que fiz foi o #EuEstou, passando pelo AmarElo Prisma, um projeto feito com Emicida no qual falamos desde ayurveda a saúde mental e criação de comunidades para as quebradas. Agora mesmo*, foi lançado o podcast Casa Floresta, um projeto sobre a causa indígena, do Instituto Socioambiental. Em todos eles, o meu papel é ser estrategista narrativo: não só como criador ou roteirista, mas trabalhar na estratégia na qual cada peça da narrativa macro que queremos contar se encaixa do melhor jeito. Ainda mais pensando no consumo de internet no Brasil: onde as pessoas estão e como usam e como a internet não é ainda difundida. Não se trata da internet rápida e a banda larga, mas todo mundo tem um celular e usa rede social ou WhatsApp.

 

Como chegamos nas pessoas com esta comunicação? Não necessariamente com a ideia de afronta, de dizer “você está errado” ou de dedo na cara. É o que gosto de chamar de militância afetiva – da narrativa, da história e de fazer você se importar com outra pessoa, outra família, outra comunidade e outra causa. As grandes sacadas desses processos são quando começamos a usar as linguagens das plataformas para cada coisa. Um exemplo que sempre dou: mesmo com a mesma história e até os mesmos atores, a mesma novela terá uma cara em cada rede de televisão em que você colocar – terá uma cara diferente no SBT, na Globo, na Record e na Netflix. Mas a história será a mesma.

 

Acredito muito em que podemos fazer o que quisermos na internet, mas cada lugar tem uma expectativa de linguagem.Para o Instagram será uma e no TikTok será outra, assim como no Twitter e no WhatsApp; para a classe A será uma e para as classes B, C e D será outra; assim como com pessoas pretas e amarelas. Começa-se a criar estes funis de linguagem – e é aí que a linguagem funciona. Um exemplo prático é muita gente querendo fazer vídeo com áudio, mas em muitas redes sociais a maioria dos vídeos é usada sem áudio. Tirando o TikTok, que tem dancinhas e músicas como algo muito importante, as outras redes sociais não têm áudio – você ouve uma música ou um podcast e entra no Instagram. É necessário haver legenda até para ser inclusivo: se não houver textos delimitando e falando o que você quer transmitir, como se fossem um highlight e uma caneta de marcador de texto para entender e desmutar o vídeo, ele não dirá nada. Ter inteligência de estratégia narrativa para nós é muito importante.

 

Outra coisa que aprendi é ser humano. Às vezes, sinto que as causas querem estar corretas e falar o que é certo e da maneira como tem de ser, em vez de deixar a pessoa chegar a essa conclusão, como é em uma história na qual fica um suspense para saber quem é o assassino, ou em outra na qual se quer saber se as pessoas ficarão juntas ou não. Funcionará mais se a pessoa tiver uma jornada contigo. Nos grandes projetos que fiz, é quase sempre a mesma jornada: chamar a pessoa para ouvir um áudio, um podcast de uma hora e meia, sobre um disco do ano, sobre o AmarElo, e no meio do áudio, além de saber sobre a história de Emicida, ouvir a história da Lab Fantasma e da família do Emicida, a história do hip hop. Mas há também dentro as coisas políticas, como alimentação, saúde mental, saúde holística e do corpo, criação de comunidade, a importância dos movimentos negros e tudo isso dentro.

 

*N.R.: a entrevista foi realizada em 19 de setembro de 2022

 

 

Quais podem ser os caminhos para a produção de conteúdos que tenham mensagens contundentes, e não caiam na questão do didatismo ou da suposta superioridade moral, para ser assimilados de maneira produtiva para quem está fora da bolha?

M.M. Izidoro: Sinto muito que a ideia da bolha é muito forte. Agora, com o lançamento do Casa Floresta, houve um momento muito bonito. Mariana Belmont, uma amiga minha, que é do movimento ambiental e sustentabilidade, ouviu o podcast e mandou um áudio longuíssimo, quase um podcast dela mesma, com as ideias dela. No começo do áudio, ela estava odiando o podcast e, no meio, ela foi se ouvindo falar e entendeu que o podcast não foi feito para ela, mas para furar a bolha. O podcast não é para quem já fala sobre a causa ambiental, mas para quem pode e deve ouvir falar da causa ambiental.

 

Não à toa, o primeiro episódio começa com Davi Kopenawa andando por São Paulo com Maria Ribeiro, uma atriz global: é o encontro de pessoas que muitas vezes concordam, mas várias vezes discordam também. É um diálogo no qual ele fala alguma coisa e talvez Maria não entenda, ou Maria fala alguma coisa e Davi rebate, e plantamos em nós mesmos questões sobre de qual lado estou, se existe um lado ou se não é o mesmo lado, com pontos de vista diferentes. Acho que, para causas tão importantes e urgentes como as causas feminista, preta e dos povos das florestas – quilombolas, ribeirinhos e indígenas -, ficamos muito no lugar da urgência, de que tem de falar, melhorar e resolver. Mas as pessoas só se importarão se elas se identificarem com a história e se alguma coisa na história conectar. Se tudo é história e narrativa, como nos apegamos e qual é o gancho? No filme de guerra dos Vingadores há um rolê emocional – idem no filme de guerra do Tom Cruise e você torcerá para ele atirar. Por que não torcemos para se plantar uma semente ou para um policial não dar um tiro nas costas de uma pessoa negra em uma comunidade? Porque a história nunca foi contada assim, talvez.

 

Esta é uma das teorias que tenho: como mudamos esta história? Do nosso lado, como narrativizar e contar essas narrativas de outra maneira, mais afetuosa e afetiva, mesmo se estivermos bravos, com os nossos tomando tiro e todo mundo morrendo? Ao mesmo tempo, se não for emocional, não dará certo e o grande exemplo disso é o dinheiro: não sabemos explicar por que acreditamos no dinheiro e ele é importante. Mas para nós é e, como é, fazemos tudo por ele. Ao fazermos tudo por ele, agimos, brigamos, matamos, morremos e fazemos tudo. Como fazemos uma narrativa tão poderosa quanto o dinheiro, quanto à ideia do dinheiro? Acho que do nosso lado é isso.

 

 

 

M.M. Izidoro fala sobre estratégias para narrativizar e transmitir conteúdos densos de forma empática e afetiva

 

Quando falamos em novas narrativas, por mais óbvio que o protagonismo de comunicadores de grupos subrepresentados têm para contar as próprias histórias, por quais motivos é estratégico dar a importância que esse fato tem para enriquecer o impacto da mensagem a ser transmitida, pensando na perspectiva afetiva?

M.M. Izidoro: Dentro da perspectiva afetiva de grupos minoritários, uma das coisas que gosto de fazer é quase sequestrar as formas de história, pois cada uma tem uma forma. Trabalhamos muito no formato grego clássico ocidental, da jornada do herói, seja na história de Jesus Cristo, de Frodo em O Senhor dos Anéis, de Neo em Matrix e de Luke Skywalker em Star Wars – quase sempre homens brancos. Há um formatinho e um desenho ali de história. Do mesmo modo que sequestraram quase sempre os nossos corpos e crenças e transformaram em outra coisa, como os grupos minoritários usam isso em nosso favor? No final, se houver um formato, uma linguagem, um conteúdo e uma pauta muito diferentes, é muita coisa para alguém assimilar.

 

Como conseguimos fazer um Matrix da floresta ou um Star Wars na quebrada? São exemplos macro e gigantes, mas como começamos a sequestrar mesmo esse formato? Ao compreendermos o formato, nós nos abrimos um pouco mais – ao nos abrirmos um pouco mais, talvez a mensagem se encaixe melhor. No Casa Floresta há três diálogos: de influenciadores e convidados que foram viver experiências de aprendizagem na floresta, quilombos, cidades ribeirinhas e em aldeias indígenas, em cinco campos onde o ISA atua, e eles conversam com quem mora lá. Depois, há outro em que essa pessoa volta com a nossa apresentadora sobre o que eles aprenderam. E depois, juntando tudo isso, temos a conversa com a audiência para explicar para contar, mostrar e falar sobre a importância de colocar a audiência nessa emoção mesmo por muitas vezes – pois foi emotivo para aquela pessoa.

 

 

 

M.M. Izidoro fala a respeito de quebras de paradigmas narrativos para angariar a atenção do público para causas sociais

 

Quando se fala em afetividade, tecnologia e estratégia em termos narrativos, é possível pensarmos em hackear recursos disponíveis para ampliarmos o alcance da mensagem a ser distribuída?

M.M. Izidoro: Total. Hackear a parada é a intenção e estamos muito mais preocupados com o que o outro falará de nós em relação ao que falamos para nós mesmos. Não é entender o que uma marca global usa no Instagram, mas sim como a sua comunidade usa o WhatsApp, pois talvez eles não estejam no Instagram ou no TikTok. Aí, é o caminho do meio: como falar para dentro e para fora, para a sua comunidade e para outra, ou para o terceiro setor e a comunicação de causas, mas também como falar para o mercado – se for um influenciador, de um grupo em busca de um patrocínio ou alguma coisa assim.

 

É tentar entender muito isso. Há, por exemplo, formatos até então considerados mortos, mas o rádio é muito usado no Brasil, a TV Globo aberta ainda é vista por 40%, 50% dos brasileiros o dia inteiro – a galera assina TV a cabo para ficar ligada na Globo, sabe? Pode haver números altíssimos nas redes sociais, mas ainda não chegou lá. O Brasil não está inteiramente conectado: segundo os últimos dados, 99% das residências do Brasil – virtualmente 100% das residências – têm um celular.

 

As pessoas têm algum tipo de conectividade e, caso tenham, costuma ser com um celular pré-pago no qual quase boa parte das redes é do Meta – e quase sempre a galera só fica no WhatsApp. Se quer falar com a galera de dentro, por que forçar para falar no TikTok, que vai usar banda larga, internet do plano, e será outro lugar? Precisamos fazer essa conta: entender o público para quem falamos é muito importante. E, às vezes, não é estar onde achamos que devemos estar porque a Faria Lima, o investidor, o influenciador de milhões está nesse lugar.

 

Pensando em distribuição, como a mídia analógica pode ser uma aliada? E como o WhatsApp pode auxiliar a ampliar a distribuição de projetos e ser um antídoto contra a máquina de desinformação surgida nos últimos anos?

M.M. Izidoro: Acho que o Brasil ainda é muito analógico. Fiz alguns projetos recentes. O #EuEstou mesmo: grande parte do projeto não veio na internet, mas a partir da internet. Fizemos cartilha e enviamos vídeos, áudios e essas cartilhas para uma pessoa que tinha internet. Às vezes era um líder comunitário, um professor de uma escola ou pastores que, na congregação deles, começaram a olhar para isso não só na parte religiosa, mas quanto à religiosidade.

 

Muita gente usava os nossos conteúdos analogicamente, pegando um vídeo vertical, feito para a tela do celular, e projetando-o em uma parede, televisão ou laptop para a galera assistir junto e conversar em um grupo de apoio. Isso aconteceu muito no AmarElo Prisma também: muitos professores, comunitários e quilombos queriam ouvir e não tinham acesso. Mandamos para uma pessoa e ela fazia reuniões analógicas para colocar para tocar e assistir, ouvirem e comunicarem juntos.

 

 

 

M.M. Izidoro descreve possibilidades para comunicação em âmbito analógico com grupos com acesso reduzido a recursos tecnológicos

 

 

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Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Livia Sá

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