No tecido multifacetado da sociedade, as vozes marginalizadas e periféricas são frequentemente silenciadas, subjugadas e obscurecidas. O contexto das coletivas participantes da temporada 3 da websérie Ancestrais do Futuro é composto por histórias cuja humanidade é entrelaçada com experiências que transcendem o centro e fluem nas margens. Desse modo, elas enchem a vida com diversidade de perspectivas e sonhos que merecem ser ouvidos. A importância dessas vozes é ímpar, pois elas enriquecem o panorama cultural, social e artístico, enquanto reivindicam seu lugar legítimo no palco da arte e da cultura.
Narrativas autênticas são as pedras angulares de qualquer sociedade que se propõe progressista. Quando as pessoas à margem e as periféricas se tornam autoras de suas próprias histórias, uma mudança sísmica ocorre na forma como o mundo as percebe. A narrativa é uma ferramenta de empoderamento, permitindo a quem foi historicamente excluído a se reafirmar e moldar a percepção de sua identidade.
Por séculos, a supremacia de determinados grupos delineou as narrativas predominantes, deixando as vozes periféricas em segundo plano. No entanto, à medida que outras vozes ganham seu espaço, suas histórias emergem com autenticidade que desafia estereótipos e rompe barreiras. E essa é a razão de ser da temporada 3 de Ancestrais do Futuro.
Exemplos que inspiram
A literatura periférica é um tesouro de narrativas por muitas vezes originadas nas lutas e triunfos das classes populares. Autoras/es vindas/os desses contextos trazem à tona realidades frequentemente ignoradas, mergulhando na complexidade das emoções humanas. Nomes como Conceição Evaristo, Ferréz e Carolina Maria de Jesus representam vozes literárias que não apenas narram suas experiências, mas também ecoam as vozes de inúmeros outros. Eles desafiam a noção segundo a qual a literatura é exclusiva de determinados estratos sociais, enriquecendo o cânone com histórias que ecoam resiliência e resistência.
O cinema oferece uma plataforma poderosa para compartilhar as realidades das pessoas marginalizadas e periféricas. Cineastas oriundas/os desses contextos trazem uma lente única para a tela, retratando vidas, culturas e desafios de maneira autêntica. Em 2010, ficou famoso o caso do filme produzido pelo renomado diretor Cacá Diegues e por Renata de Almeida Magalhães, a primeira mulher na presidência da Academia Brasileira de Cinema. A dupla promoveu o protagonismo de cinco jovens das favelas do Rio de Janeiro por meio da direção do filme Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos, dialogando com o clássico do cinema novo Cinco Vezes Favela (1962).
Nesse sentido, o propósito da temporada 3 de Ancestrais do Futuro dialoga com essa lógica centrada na memória e na ancestralidade. Por meio do ditado yorubá “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”, a série visa mostrar o papel desses mesmos temas.
Assim sendo, um dos trechos da carta-convite aos coletivos mostra bem essa premissa:
“Quem vai contar ao futuro o passado glorioso que sempre fomos? Qual memória do presente estará em nossos futuros? Buscamos essas histórias, aquelas que são observadas nas festas populares, nas frestas do tempo e da sociedade, a memória da rua, dos morros e de todos que estão à margem.”
Um movimento para frente
O movimento em direção à autonomia narrativa não é uma mera reivindicação de espaço, mas uma busca por justiça social e igualdade. Quando as vozes periféricas se tornam as contadoras de suas histórias, a humanidade é lembrada de sua diversidade intrínseca e da inegável interconexão de todas as vidas.
Logo, a desconstrução das narrativas monolíticas cria um terreno fértil para empatia, compreensão e solidariedade genuína.
Assim sendo, a temporada 3 de Ancestrais do Futuro contará com cinco coletivos. Eles serão responsáveis, cada um em seu episódio, por mostrar o papel central da memória e da ancestralidade em seus respectivos territórios:
- Um Campo e Suas Vidas – Força Tururu, de Paulista (PE);
- Sem Encruzilhada – Negritar Produções, Belém (PA);
- O Traçado – Souza.Doc, de Santarém (PA);
- Neurótico e Consciente – Olhar Marginal, da Baixada Santista (SP);
- Marias do Sul – DDB7 Produções, de Londrina (PR).
De acordo com Fernanda Nobre, gerente de Comunicação da Fundação Tide Setubal, a seleção dos coletivos evidencia o propósito de promover o protagonismo de vozes periféricas. “Os projetos apresentados pelos cinco grupos evidenciam a potência para propor novas narrativas com sensibilidade e, enfim, envolver públicos que não estão envolvidos nesses contextos. Desse modo, todos os curtas-metragens mostrarão, após finalizados, a capacidade dos coletivos para contar as histórias de seus territórios e ancestrais com criatividade, inventividade e riqueza intelectual.”
O que significa reverenciar a memória?
A temporada 3 de Ancestrais do Futuro visa apresentar o protagonismo das populações periféricas nos seus territórios. Parte importante dessa premissa vem do processo de formação das coletivas coordenado por por Tony Marlon e Well Amorim, respectivamente jornalista e cineasta.
Durante um dos encontros, Tony destacou o papel dessas produções para reverenciar a memória. “Tenho estudado sobre algo que aprendi a nomear como produção social do esquecimento. Ou seja, sobre por que a sociedade escolhe se lembrar de determinadas coisas em detrimento de outras. O tema deste ano é uma referência, estudo e pesquisa sobre a importância da memória para apontarmos para o futuro.”
Essa lógica dialoga com a formação de comunicadoras e comunicadores populares, pois as demandas do espaço ganham hora, vez e voz. É o caso do Força Tururu, selecionado nesta edição. Cidicleiton Zumba, integrante do grupo, descreveu o trabalho na Região Metropolitana de Recife (PE) – e em outros estados.
Um exemplo é a produção de conteúdo audiovisual para denunciar ao poder público problemas crônicos com o abastecimento de água em um território em Maceió (AL). “Sempre que falta água na comunidade, eles soltam esse vídeo, pois é atemporal. A galera lá fez uma comédia em cima desse contexto da falta d’água e dos rios poluídos, pois não tem outra opção. Sempre que falta água, o povo ‘cutuca’ o poder público por meio desse conteúdo”, ressalta Cidicleiton.
Em conclusão, ao se tornarem os mestres de suas próprias narrativas, as vozes periféricas desafiam o status quo, humanizam experiências ignoradas e modificam contadoras/es e ouvintes. A literatura e o cinema feito por cineastas oriundos das classes populares são, finalmente, faróis de luz. É imperativo celebrar, promover e amplificar essas vozes, construindo um futuro no qual a riqueza das histórias humanas seja verdadeiramente universal.
Por Daniel Cerqueira / Imagem: youtube.com/canalenfrente