Fundação Tide Setubal
Imagem do cabeçalho
Imagem do cabeçalho

Toda cota racial é, em primeiro lugar, social – Fundação Tide Setubal entrevista Márcia Lima

FundacaoTideSetubalEntrevista

22 de março de 2020
Compartilhar:

Por Amauri Eugênio Jr.

 

 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,3% dos alunos matriculados em instituições de ensino superior federais eram negros. Ainda, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Lei de Cotas ampliou em 39% a presença de estudantes negros e indígenas nesses mesmos institutos.

 

Apesar de estes dados mostrarem que o acesso de jovens negros ao ensino superior aumentou, o cenário está longe de chegar a qualquer nível de equidade. Segundo o IBGE, 18,3% de jovens negros estão em nesses mesmos institutos e o Segundo o Censo da Educação Superior aponta que 16% dos professores universitários brasileiros declararam-se pretos ou pardos. Ainda, de acordo com estudo do Instituto Locomotiva, homens brancos e mulheres negras têm salários médios diferentes mesmo tendo concluído o ensino superior: elas recebem R$ 2.918, enquanto o rendimento médio deles é de R$ 6.702. Para completar, a população negra é sub-representada em espaços de poder e decisão.

 

Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Márcia Lima, professora do departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Afro – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e conselheira consultiva da Fundação, fala sobre a desigualdade sociorracial no ambiente acadêmico, o papel de entidades ligadas ao Investimento Social Privado (ISP) para apoiar pesquisas acadêmicas e iniciativas voltadas à promoção da equidade, o trabalho do Afro no enfrentamento do racismo, promoção de direitos humanos e fortalecimento da democracia, e a função da Lei de Cotas na democratização do acesso ao ensino superior.

 

 

Iniciativas como o Afro mostram que entidades ligadas ao ISP têm percebido a importância de investir na redução de desigualdades, mas apenas 14% dos investidores enfocam em critérios raciais ou comunidades tradicionais em seus projetos. Como o ISP pode ser importante para o trabalho feito em universidades e ajudar na democratização do acesso ao ensino superior?

 

Embora algumas entidades ligadas ao ISP percebam a importância da questão racial – em especial no tema a educação -, o investimento ainda é reduzido. É necessário fazer algumas ponderações sobre a importância do ISP para o trabalho em universidades. O sistema de ensino superior no Brasil tem pouquíssimas universidades – o predomínio é de faculdades privadas. O acesso ao sistema universitário para ensino, pesquisa e extensão é mais fechado e elitizado.

 

A segunda distinção importante é como atuar nas universidades públicas e privadas. O ISP encontrará cenários distintos em termos de investimento em pesquisa, corpo discente e de estrutura de cursos, o que produz um cenário muito diferente de desigualdade de acesso. O apoio à pesquisa sobre ensino superior é uma atuação importante, assim como são o apoio aos coletivos de estudantes, ao advocacy em prol da permanência das políticas de acesso ao ensino superior por meio das políticas de reservas de vagas nas instituições públicas, e do FIES e ProUni, no caso das  instituições privadas.

 

 

O Afro atuará nos eixos de Cultura e Identidades, Discriminação e Desigualdades, e Políticas e Direitos. Como será o trabalho desenvolvido? O que você pode dizer sobre o seu trabalho na coordenação do núcleo, inclusive na busca e/ou captação de mais fontes de apoio?

 

O Afro é um núcleo de pesquisa, formação e difusão sobre a temática racial vinculado ao Cebrap. O nosso diferencial está relacionado à forma como tenho captado recursos. A minha proposta tem sido buscar apoios para a institucionalização do núcleo como um todo e não por projetos.

 

Em Culturas e Identidades trabalhamos com o resgate e a sistematização de acervos do movimento negro, promovendo a preservação da memória, a disseminação da história e o diálogo intergeracional. Investigamos as trajetórias intelectuais e o pensamento negro brasileiro, movimento quilombolas e feminismo negro por meio de linguagens que vão do hip hop ao cinema, passando pelos coletivos universitários, periféricos e culturais.

 

Os eixos de atuação em Políticas e Direitos são o direito e o antirracismo; a aplicação da lei antirracista, bem como as legislações vigentes e propostas, políticas para populações quilombolas, no Brasil como em outros países da América Latina. Já em Discriminação e Desigualdades realizamos a produção e análise de dados sobre a produção e reprodução das desigualdades raciais e das situações de discriminação em diferentes esferas: educação, em especial no acesso ao ensino superior; mercado de trabalho, no território; violência e na política.

 

Até o momento contamos com o financiamento da Fundação Tide Setubal e do Instituto Ibirapitanga e com o apoio da University of Pennsylvania (UPenn) para um projeto sobre memória negra. Já temos parcerias firmadas com o Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Unicamp, e com o Jornal Nexo. Temos buscado mais apoio para ampliar os recursos dos pesquisadores, pois nossa equipe é grande, e queremos conseguir recursos específicos para divulgação científica. Gostaria que o Afro se tornasse uma referência em divulgação científica nas Ciências Humanas.

 

 

Uma pesquisa de 2017 apontou que a diferença salarial entre pessoas negras e brancas é significativa mesmo quando ambos os grupos sociorraciais, em especial quando são subdivididos por gênero, têm a mesma formação acadêmica. Como a produção acadêmica voltada ao estudo sobre desigualdades sociorraciais e para a permanência de alunos negros no universo acadêmico pode contribuir para mudar esse cenário? O ISP pode exercer papel estratégico para o fomento a essas ações?

 

As pesquisas acadêmicas denunciam as desigualdades raciais desde anos 1970, mas até hoje encontramos intelectuais que consideram a questão racial como um problema menor ou um não problema da sociedade brasileira. As mudanças que assistimos no passado recente do país foram a convergência de pesquisa acadêmica, militância política e um governo que se interessou, após uma longa e histórica mobilização política, em incluir a questão racial na pauta agenda do estado brasileiro. O ISP é um aliado crucial, pois o seu engajamento amplia recursos para este somatório de forças, ainda mais no contexto atual. As militâncias estudantis negra e não negra também são fundamentais.

 

 

Segundo o Censo da Educação Superior, 16% dos professores universitários brasileiros declararam-se pretos ou pardos. Como o ISP pode atuar para mudar esse panorama e tornar o corpo acadêmico mais plural?

 

Todos os editais existentes com cotas são bastante complicados e é muito difícil mudar essa realidade no poder público. A lei existe, mas é muito pouco implementada, pois os concursos públicos têm uma ou duas vagas em geral – é necessário haver três ou mais vagas para aplicar cotas. Em geral, os concursos evitam ter um número maior justamente para não colocá-las. Há muitas experiências muito complicadas e não vejo muito interesse em fazer isso.

 

Acredito que temos excelentes docentes negros, mas a  geração que está se doutorando agora tem mais dificuldade para ingressar no mercado de trabalho por estar no meio de uma crise –  a academia está em um momento de bastante dificuldade para acesso a recursos. Não é só um momento de recrudescimento econômico: essa agenda, em que os docentes em geral trabalham em pesquisas, tem sido desqualificada pelo Estado brasileiro.

 

Neste sentido, a Afro tem investido bastante nisso, pois tem uma equipe formada por muitos pesquisadores negros – não apenas, mas bastante pesquisadores negros -, que são pessoas em início de carreira e podem ter as suas pesquisas financiadas. É uma iniciativa importante que conta com apoio do ISP. O Afro procura investir na formação de pesquisadores negros, sendo a maioria vinculada a alguma universidade, onde não há recursos para pesquisas.

 

Em geral, as universidades públicas brasileiras não têm muita facilidade em parcerias público-privadas e esse é um grande problema que não tem a ver com questão racial ou agenda. Trata-se de um modelo de universidade pública, que é mal estruturada para receber recurso privado.

 

Thiago Amparo (à direita), professor da FGV e colunista da Folha de S.Paulo, e Márcia Lima, durante o Vozes Urbanas realizado em setembro de 2019 (Foto: DiCampana Foto Coletivo)

 

 

Quais medidas as universidades públicas podem adotar para acolher alunos negros e/ou periféricos no que diz respeito à permanência e à ruptura do padrão eurocêntrico na academia? Por quais motivos?

 

Muitas universidades públicas não têm recursos financeiros ou interesse político em fazer isso e as pessoas acham que se trata de simplesmente criar vagas. A questão  da permanência, mesmo sem recorte racial, sempre foi um problema, pois a verba das universidades públicas para investimento em assistência social não é muito alto. Isso varia muito de universidade para universidade. Há uma questão de recurso e de prioridade de assistência ligada às universidades, sobre como estão estruturadas as políticas sociais e afirmativas. Não é possível existir um padrão, pois isso varia muito de instituição para instituição, e não dá para traçar um quadro geral.

 

A questão do recurso de bolsas, do acompanhamento dos estudantes, de espaço de discussão, acolhimento e escuta é um problema. A permanência não envolve só a questão financeira, mas o próprio espaço institucional e como esses alunos estão dentro da universidade. Ainda, a relação com os docentes é bastante tensa: há muita dificuldade do próprio corpo docente aceitar [esses] alunos na universidade. Há quem acha que se deve reprovar todo o mundo e quem defenda a redução do ritmo.

 

Existem diversas vertentes: a paternalista e aquela para a qual há espaço para esses alunos. O corpo docente não está acostumado a lidar com alunos das periferias, negros e de classes sociais diversas. Repito: isso não tem institucionalidade e padrão. É muito ad hoc, pois cada lugar age de um jeito e depende de quem é o reitor ou o coordenador do curso de graduação naquele momento. Além disso, as diferenças entre os cursos e as áreas são muito grandes: algumas têm muita resistência e outras, menos. Essa questão é muito complexa.

 

 

Houve, entre 2012 e 2016, aumento de 39% na presença de estudantes negros e indígenas vindos de escolas públicas em instituições federais de ensino  superior, segundo pesquisa feita a partir de dados do INEP. De qual maneira indicadores como este evidenciam a importância do debate sobre a manutenção da Lei de Cotas?

 

Existe uma diferença conceitual entre universidades federais e demais instituições de ensino superior. E, ao olhar detalhadamente para os dados [sobre proporção racial em cursos], pode-se perceber que há muita desigualdade nesse quesito. A lei federal de 2012 e as políticas que a antecederam são importantes porque mostraram que, sem política pública adequada, a gente não conseguiria fazer inclusão racial no sistema de ensino superior brasileiro.

 

É importante aprofundar para ver em quais tipos de instituições eles estão entrando, pois a gente sabe que lá existem alguns gargalos de desigualdade, e haver a manutenção das cotas para a gente aperfeiçoar o processo de inclusão.

 

 

Como é possível melhorar o nível do debate sobre cotas raciais e evidenciar a importância delas por meio de fatos concretos, para mostrar à sociedade civil como se trata de algo fundamental para reduzir desigualdades socioeducacionais?

 

Acho que o debate das cotas já avançou muito no Brasil. Embora ainda exista resistência à implementação das cotas raciais, elas estão bastante consolidadas. Um fator muito importante para o debate é deixar claro que toda cota racial é, primeiro, social. A Lei de Cotas prevê que sejam considerados os critérios relativos ao estudo em escola pública e à renda – após isso a cota passa a ser racial. Esse é um dado que não aparece muito no debate, mas é importante evidenciar que a cota racial é aplicada após esses dois critérios sociais.

 

Estudos demonstram que estudantes cotistas têm bom desempenho ao longo do processo, que a taxa de evasão não é tão superior à média e que, ao longo do processo, os alunos melhoram o desempenho. Há problemas nas universidades, mas há uma boa aceitação do processo lá dentro. O modelo foi bem-sucedido, pois todos os temores e questões de quem era contrário às cotas não se concretizaram. Houve avanços muito importantes no combate à desigualdade racial no acesso ao ensino superior. Há muito mais avanços do que problemas.

 

Agora, os problemas existentes na lei podem ser melhorados e ela [a lei] deve ser aperfeiçoada e revista em alguns critérios. A atuação será pela permanência da Lei de Cotas, para permitir, por meio de debate sério e adequado, aperfeiçoar os mecanismos de inclusão de carreiras, o que é um problema.


Compartilhar:

Nós utilizamos cookies para melhorar a experiência de usuários e usuárias que navegam por nosso site.
Ao clicar em "Aceitar todos os cookies", você estará concordando com esse armazenamento no seu dispositivo.
Para conferir como cuidamos de seus dados e privacidade, acesse a nossa Política de Privacidade.