Cultura e Educação: Pares para a sustentabilidade humana*
Pensar ações que se constitua em ponto de partida, em instrumento para um debate que culmine em uma perspectiva…
Pensar ações que se constitua em ponto de partida, em instrumento para um debate que culmine em uma perspectiva da problemática educativa, cultural e de valores humanos, apresenta dificuldades que provém de uma questão essencial: os processos educativos se desenvolvem em contextos sociais e históricos concretos.
Neste sentido, conceber um projeto possível de desenvolver o potencial criativo de pessoas, é também pensar na possibilidade que este seja construído por elas e que possibilite abrir janelas críticas e conscientes, para que estas pessoas se tornem capazes de refletir sobre os seus fazeres e saberes. Saberes deixados para trás e ou adormecidos, devido ao grande fluxo de informações, vez transformados em deformações.
Vê-se a cada dia em muitos cantos do mundo e da cidade a apresentação de propostas educativas, artísticas e culturais para crianças e jovens na tentativa de salvá-las(os) dos males que o mundo contemporâneo traz, como: desemprego, violência de todos os níveis, desagregação social, apatia e outros. Muitas vezes essas tentativas soam como promessas e curadoria de almas em torno da profissionalização desses jovens.
A arte, a cultura são os antídotos prometidos para retirar esses jovens e crianças das ruas. Sim, retirá-los da rua, incluí-los em programas sociais nos quais vislumbram adquirir habilidades artísticas; de modo que com essa proposta, a nosso ver equivocada, estes jovens possam se transformar em atores ou atrizes, músicos ou artistas plásticos, malabaristas de faróis, quem sabe. São algumas questões muito presentes nesse universo de ONG’S e/ou de projetos sociais.
As chamadas oficinas artísticas, dentre outras modalidades de atividades, com honrosas e raríssimas exceções, servem para criar o desejo nestes jovens e nessas crianças de se tornarem artistas. Depois disso, o que fazer? Os jovens sonharam, tornaram-se melhores, mas a família exige uma contrapartida: Eles têm, então, que trabalhar, arrumar um emprego e levar dinheiro para ajudar no sustento de sua família, ou se profissionalizar em algum tipo de atividade, por exemplo: telemarketing. Só para citar uma.
Posto esse desafio, o que esse projeto ou essa ONG pode fazer com a promessa de transformá-los em artistas e ou profissionais das mais diversas áreas? Estes desafios fazem com que reflitamos melhor sobre as nossas práticas, pois se não olharmos melhor nessa direção, esse jovem tende a largar as atividades e partir para o sonho dourado: o de ganhar dinheiro. E isto pode ocorrer de diversas maneiras: num sub-emprego de lava-rápido, na distribuição de panfletos, entre outros. São realidades muito presentes no cotidiano de projetos que trabalha com jovens.
De modo que as nossas práticas deverão ser melhor refletidas para que não tenhamos um efeito contrário àquilo que dissemos que faríamos; ou seja, de melhorar a vida das pessoas, entre outras coisas. Entendermos o ensino da arte por meio das práticas culturais é ter em mente algumas preocupações no fazer da educação, é imprescindível que se leve em conta, minimamente, os saberes e os fazeres dos educandos com os quais estamos trabalhando. As atividades nos diversos campos do conhecimento da arte devem ser contextualizadas, levando-se em conta o momento de vida desses educandos e seu momento histórico, ligando-os à sua cultura e ao sentimento de pertencerem ao que fazem.
A arte é sempre usada como promessa para a criação de um desenvolvimento local e na maioria das vezes se esquece que é necessário primeiro compreender o contexto onde as pessoas estão inseridas. Para se falar em desenvolvimento cultural e local é necessário que se reconheça o cenário onde os diversos atores sociais se movimentam, constroem seus espaços públicos e de convívio humano, valores e não perder de vista o olhar que estes atores têm sobre a sua comunidade.
Desenvolvimento cultural local é um processo pelo qual se resgatam identidades e/ou se constroem novas a partir da compreensão dos seres que habitam aquele local e constroem aquela cultura específica.
Mas de que cultura local estamos a falar? Neste sentido, entende-se que o lugar onde a cultura acontece é o espaço onde há qualidade de vida e onde se inclui a construção da cidade real, num sentido de pertencimento.
Neste quadro pode-se dar destaque à educação como produtora e reprodutora de sentidos de existência, de trocas e de debates, de perguntas muito mais do que de respostas.
A comunicação de massa que prega cotidianamente a apreensão de uma outra cultura, parece ser uma das responsáveis por grande parte da desagregação social que se constrói nesses territórios. São informações, na maioria das vezes, deformadoras e alienadoras. Entender a importância do sentido de pertencimento, é uma preocupação que o educador deverá ter na implementação de ações sociais. O processo de alienação se constrói a partir da negação do sentimento de pertencimento; ou seja, a partir da negação de seu território ou da não comunicação com a sua cultura.
O projeto Arteculturação por meio do Núcleo Sócio Cultural traçou objetivos ambiciosos e porque não dizer, ousados à busca de respostas e mais que isso, de perguntas, a esses e outros desafios; ou seja, traçou objetivos ambiciosos para serem construídos, coletivamente na intenção de criar outra cultura no ambiente de trabalho, mas que fosse diferente da que o mundo contemporâneo tem, insistentemente, exigido desses jovens.
O mundo contemporâneo tem procurado colocar o jovem numa condição de dar respostas imediatas. Precisamos ter consciência que a sustentabilidade, tem que passar pela condição humana. Não acreditamos em sustentabilidade que não seja humana. De modo que os desafios colocados no projeto passam necessariamente, pela possibilidade de formar pessoas criativas que consigam olhar o mundo por outras frestas e ter consciência de uma criação crítica e uma crítica da criação.
O Núcleo sócio cultural trilhou, nesses poucos meses de atuação, por veredas complicadas. A questão era: como trabalhar com tantos jovens que vieram na intenção de cursar teatro e com este curso se tornarem atores e/ou atrizes? Atores e atrizes, não só isso. Teriam que trabalhar também em alguma emissora de televisão e se tornarem famosos. Esse sonho poderia acontecer, por que não!? Mas fomos mais longe, a nossa intenção era fazer com que esses jovens enxergassem outros caminhos; talvez menos conhecidos, mas que tivessem trilhas andáveis e mais sólidas.
Trabalhar a construção de outros sonhos não foi tarefa fácil. Passar pela possibilidade de construir o histórico de cada um e re-escrever a sua história e depois escrever a história de outros, construir um texto. Ler as letras e mais que isso, entender o que leu. Ler o mundo é uma tarefa bem difícil. Sabíamos disso, mas era um desafio. Fomos longe e ainda não chegamos, demos a partida. Há muita estrada a caminhar.
Uma das intenções do projeto, por meio desse núcleo, era também experimentar outras linguagens na área do conhecimento que a própria linguagem do teatro exige. Conhecer técnicas de luz, de som, cenografia, figurino. E a cidadania, como construir com eles esta compreensão? Aliás, o que é mesmo cidadania? E de que modo podemos responder a tantos desafios que a vida oferece? Os(as) meninos(as) buscam ser ator ou atriz?
Chegamos hoje, quase no meio do caminho. Agora com mais pedras do que antes. Construímos outros desafios e com eles, outras possibilidades: a de dizer que é possível sonhar. Acho, embora cedo, que é possível trilhar por esse caminho por nós escolhido – em busca do “fazer junto”, do “fazer com” – a construção de uma cidadania ativa e com ela construir projetos mais coletivos e fazer valer as lições e ações por eles apreendidas nas suas comunidades ou noutros espaços por onde vierem a conviver.
Entendemos que esses meninos e meninas possam ter trilhado caminhos mais seguros e, com esta segurança, ter lhes apontado veredas mais sólidas e mais críticas, tornado cidadãos e cidadãs melhores e mais preparados para enfrentar os desafios do mundo lá fora, a partir dessa nova descoberta: o mundo interior. O alicerce foi construído. O desafio da construção da individualidade foi posto em contraposição a do individualismo.
A arte teve sua importância neste cenário. A contextualização foi parte indispensável desta construção. A ausculta social, metodologia aplicada em todo processo fez cavar em cada gente, especialmente, em nós educadores, outras formas de olhar o mundo e de nos vermos. O mundo que nos desafia ficou a nos olhar com outros olhos. A olho nu, a ausculta disse ao olhar que seria possível ter gestos mais humanos e diferentes daqueles que se apresentaram em primeiro plano, como o único e teoricamente mais possível. Os ruídos internos nos levaram a outros mundos desafiados pela compreensão do reconhecimento de mim no outro e este em mim. Os eu’s anteriores nos eu’s do/no mundo, interligando a mim, outros seres antes inexistentes, agora re-conhecidos em mim mesmo, a partir de meu gesto escondido no outro que antes me envergonhava. Envergonhava-me por não saber dizer de mim no outro.
As piscadelas de meu olhar têm outro sentido, agora são outros desafios a fio. Culturalizar a educação é arte que se constrói. Vemos que a arte tem e teve um lugar de destaque nos processos de transformação; aliás, a arte é agente de transformação, produto e produtora do processo de transformação. Foram os contextos, des-contextos e re-contextos, parte deste cenário de atores e atrizes que re-fizeram num dizer possível: SER.
São desafios que a própria condição social atual exige. São milhões de jovens que circulam nas cidades do Brasil e do mundo à busca de respostas a tantas perguntas. São desafios exigentes e extraordinariamente comprometedores para a compreensão de seres mais humanos, que tenham em sua bagagem de ser a possibilidade de viver o seu momento de ser jovem e, portanto, uma pessoa. Aqui se escreveram pequenas histórias e longas conversas se desenvolveram em torno dessa construção. Se desconstruiu muitos jeitos e se fez disso outros jeitos de se dizer e de se fazer, nomeadamente, o de se reconhecer como sujeito ativo, participativo. Pôde-se também abrir janelas de se ver o mundo com diálogos mais dialógicos, como àqueles de se fazer saber o que havíamos esquecido que sabíamos fazer.
Tião Soares – mestre em educação e coordenador de cultura da Fundação Tide Setubal.
*Este artigo é parte integrante do livro: Cenas: Trajetos, vivências, história de Ser Jovem, lançado pela Fundação Tide Setubal em novembro de 2008.