Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
“A literatura periférica fala diretamente com a realidade de adolescentes e jovens” – Fundação Tide Setubal entrevista Rodrigo Ciríaco
Por Daniel Cerqueira l Foto: Renata Armelin Rodrigo Ciríaco é formado em história e atua como educador desde 2001, quando começou como professor eventual na rede estadual e, ao mesmo tempo, fazia trabalho voluntário escrevendo na revista OCAS. Em 2006, começou a ter contato com os saraus das periferias, em especial […]
Por Daniel Cerqueira l Foto: Renata Armelin
Rodrigo Ciríaco é formado em história e atua como educador desde 2001, quando começou como professor eventual na rede estadual e, ao mesmo tempo, fazia trabalho voluntário escrevendo na revista OCAS. Em 2006, começou a ter contato com os saraus das periferias, em especial com o da Cooperifa, e passou a interessar-se pela ideia de trabalhar com os saraus dentro das escolas.
Em 2009, fundou o grupo “Os Mesquiteiros” e deixou, em 2016, a docência na escola pública para se dedicar aos saraus, vindo a desenvolver o que chama de “Pedagogia dos saraus”. Rodrigo é também escritor e já publicou quatro livros, entre eles o “Te Pego Lá Fora”.
Nesta entrevista, conversamos com o educador e escritor sobre as perspectivas do movimento literário das periferias, a relevância dessa literatura para o letramento de adolescentes e jovens, sobre a pedagogia dos saraus e, ainda, a respeito do curso que ele está desenvolvendo com a Fundação Tide Setubal para docentes da Diretoria Regional de Ensino de São Miguel, na Zona Leste de São Paulo.
Para começar, gostaria que você fizesse uma avaliação do movimento literário das periferias de São Paulo atualmente. Está em crescimento? Qual o envolvimento dos moradores e moradoras das periferias com a literatura?
Nós tivemos uma primeira fase da literatura periférica que consistia na publicação dos “Cadernos Negros”, em 1978. Depois, em 2001, começam a surgir os saraus, impulsionados por publicações mensais do escritor Ferréz na revista Caros Amigos. E, a partir de 2010, o movimento de saraus e slams tem crescimento vertiginoso. De 2016 para cá existe muita coisa acontecendo em todas as regiões periféricas de São Paulo, mas, curiosamente, o mercado editorial tradicional ainda absorve pouco esse tipo de produção – e a possibilidade de produzir ficou limitada por causa da crise econômica no Brasil. Então, a gente continua buscando formas alternativas de existir na literatura, sem precisar de intermediários, porque eles ainda não olham para as produções periféricas com seu real potencial. E isso dá ainda mais força para a existência de saraus.
Você utiliza o termo “pedagogia dos saraus”. O que exatamente quer dizer com esse termo?
Quando comecei a utilizar os saraus nas escolas em meus projetos pedagógicos como docente, percebi que esta era uma forma de pensar sobre a realidade de maneira menos mecânica em comparação com o modo como alunas e alunos estavam acostumados. Com o tempo, outros professores e professoras começaram a me procurar para pedir auxílio sobre como utilizar os saraus nas escolas e passei a me dar conta de que esse trabalho poderia ser sistematizado em uma metodologia de ensino. Em 2014, eu adoto esse nome “pedagogia dos saraus” para dizer desse jeito de ensinar onde o aluno/leitor aprende ativamente, uma vez que não existe sarau sem participação de todos e todas.
Ao utilizar uma literatura mais próxima dos adolescentes e jovens, podemos dizer que a “pedagogia dos saraus” é um processo que intensifica o letramento e a alfabetização escolar?
Em primeiro lugar, é importante a gente apresentar alguns números, que podem, em princípio, parecer estatísticas frias, mas também traduzem muita coisa. Segundo os dados da pesquisa “Retratos da Leitura”, de 2016, 30% da população nunca compraram um livro e 44% não têm o hábito de leitura, ou seja, não leem ao menos uma obra a cada três meses. Trata-se de números graves quando a gente pensa que ampliamos, pela leitura, o nosso conhecimento, o vocabulário, a capacidade de expressar-se melhor, e assim por diante.
Nós, docentes, precisamos de formação permanente, pois não é possível dar o que não temos – essa mesma pesquisa mostra que 50% de professores não são leitores. Essa formação serve também para quebrar o preconceito com a literatura periférica: dizem que, ao falar a linguagem da favela, a gente está deseducando. Ninguém diz que Guimarães Rosa ensina a falar errado em “Grande Sertão Veredas” ou que Saramago ensina escrever errado com aquele sistema de orações longas e sem pontuação. Por que dizer a linguagem das periferias é “ensinar o errado”?
Do outro lado, esta mesma questão da linguagem é o que possibilita o aumento do letramento nas população periférica, pois a literatura periférica fala diretamente com a realidade desses adolescentes e jovens – com isso, o interesse pela leitura e pela escrita aumenta consideravelmente.
Por falar nisto, esse mês você, em parceria com a Fundação, começa um ciclo de formação de professores na Diretoria Regional de São Miguel. Você pode contar um pouco sobre que ciclo é esse e como está estruturado?
O curso foi estruturado a partir de uma experiência que tive em um projeto do SESC chamado “Arte da Palavra”, no qual pude trabalhar com o tema da criatividade a partir dos saraus. Surgiu este ano a oportunidade de replicar a minha experiência com a Fundação Tide Setubal, em um curso exclusivo para professores e professoras de São Miguel de todas as áreas [do conhecimento], mas com prioridade para as de sala de leitura e de língua portuguesa. Já faz 18 anos que estou diretamente envolvido com a escola pública e costumo dizer que saí da “rede” para me jogar no mar e ter maior liberdade de navegar com o tema da educação, mas sem me desconectar da escola pública – a proposta é replicar a pedagogia dos saraus e inspirar as escolas da região. Haverá quatro encontros estruturados com uma parte explanativa/teórica e uma prática, de organização de um grande encontro de sarau com professores e alunos e alunas das suas escolas.
Durante um evento recente na biblioteca Mário de Andrade, o escritor angolano Kalaf Epalanga declarou que as populações das periferias e, de forma geral, dos grupos identitários precisam consumir a literatura produzida por eles próprios, para não precisarem de uma pessoa de fora – um salvador – que diga se aquilo é bom ou não. Como escritor, você já vê esse movimento acontecer?
A expansão dos saraus e dos slams é a nossa resposta a isso e é o nosso jeito de fazer a nossa literatura chegar nos nossos territórios. Mas, precisamos de recursos para a ampliação de eventos como clubes de leitura, festas literárias e encontros com autores, ou seja, que fomentem ainda mais a leitura nestes locais. A literatura e a poesia foram por muito tempo elitistas, pois a produção era da classe média alta e a formação do leitor era restrita a pequenos grupos de aquisição econômica.
Se, por um lado, a produção e distribuição são difíceis, por outro, a educação precisa melhorar para mais pessoas quererem ler. Para você ter uma ideia, quase não existem livrarias e sebos nas periferias. Como acessar os livros se eles não estão nos territórios? Por isso, as festas literárias e as bibliotecas comunitárias acabam sendo importante, pois suprem essa ausência e, ainda bem, estão cada vez mais presentes no dia a dia das periferias.
Amauri Eugênio Jr.