Dia após dia, um fato torna-se cada vez mais evidente e inegável: nossa vida é fortemente influenciada pelas gigantes tecnológicas. Nesse sentido, do anedótico ao assustador, os exemplos passam pelo debate acalorado sobre o uso de inteligência artificial para produção de conteúdo e as consequências éticas de tais decisões.
Sendo assim, para falar sobre esse contexto, que está longe de ser uma distopia e bem próximo da realidade, entrevistamos João Archegas, pesquisador sênior de Direito e Tecnologia no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).
Durante a entrevista, Archegas, que é também mestre em Direito pela Harvard Law School, falou sobre estes e outros aspectos, destacado como a sociedade civil organizada e o ISP podem envolver-se nesse contexto. Logo, o diálogo passou também pelo inevitável debate sobre o PL 2630 (spoiler: não é correto chamá-lo de PL das Fake News), regulação da atuação das big techs, como o Estado pode ser mais efetivo nessa questão.
Confira a entrevista a seguir.
O PL 2630 é relativo a aspectos técnicos e comerciais no funcionamento de big techs no Brasil para além do combate à desinformação, mas foi midiaticamente associado à disseminação de fake news. Até que ponto essa simplificação narrativa é pertinente?
João Archegas: Essa narrativa deixou de ser pertinente. O projeto surgiu em 2020, no meio da pandemia de Covid-19, como resposta dos legisladores à onda de desinformação sobre lockdown, tratamento e prevenção. Ele foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira, aprovado logo na sequência no Senado, e foi vai para a Câmara dos Deputados, onde está até hoje. E foi paulatinamente transformado em um grande projeto para regulação de plataformas digitais.
Óbvio, vários mecanismos do PL 2630 visam combater a desinformação. Por exemplo, quando há transparência para as plataformas digitais no aspecto de moderação de conteúdo e comportamento, e quando se mudam alguns incentivos quanto à responsabilização das plataformas, passa-se a mirar o combate à desinformação na internet. Mas esse deixou de ser o foco principal do projeto. Quando se reduz a narrativa à ideia do PL das Fake News, abre-se espaço para críticas comuns – e equivocadas – sobre ser o PL da censura e a regulação de plataformas digitais ser equivalente a estabelecer a censura na internet. Não é verdade. O projeto deveria passar por transformação narrativa para destacar que é para regular plataformas digitais em geral e não apenas combate à desinformação.
Um dos pontos emblemáticos nos últimos meses foi a campanha de desinformação de abuso de poder econômico de big techs. Episódios como esses foram didáticos e mostram a importância de regulá-las?
João Archegas: Sim e não. Por um lado, mostra a concentração de poder desproporcional na mão de alguns agentes econômicos. Há, hoje, concentração do mercado digital em algumas poucas empresas, que se tornaram verdadeiras monopolistas e rivalizam com o poder do próprio Estado-nação. Algumas batem de frente com o Estado, ameaçam retirar certas funcionalidades dos seus serviços e das suas plataformas para evitar que uma regulação seja concretizada e efetivada. Essas questões demonstram a necessidade de se repensar a relação entre Estados e plataformas – e entre plataformas e usuários. Essa tende a ser uma relação bem assimétrica e esses episódios demonstram isso mais uma vez.
Por outro lado, o PL 2630 não pensa em concentração de poder econômico. Ele enfrentará alguns efeitos e sintomas dessa concentração de poder, principalmente sobre moderação de conteúdo e de comportamento por essas plataformas digitais. Mas não apresenta soluções para o potencial abuso de poder econômico e de posição dominante no mercado. Ao olhar para a União Europeia, o bloco aprovou uma regulação de partida. Há o DSA (Ato dos Serviços Digitais).
O PL 2630 recentemente foi inspirado no texto do DSA e se transformou à luz do ato e do debate europeu. Mas a UE aprovou também, no mesmo pacote, o DMA (Ato dos Mercados Digitais), para pensar em concentração de poder econômico e abuso de posição dominante. Há, no Brasil, somente uma face da moeda e isso demonstra a concentração de poder enfrentada há algum tempo. Mas o PL 2630 não nos dará respostas para isso, pelo menos não no formato atual em debate na Câmara dos Deputados.
João Archegas fala sobre aspectos relativos à regulação das big techs, seja por meio do PL 2630, ou parâmetros civilizatórios com atuação do Estado
Há quem defenda o uso da Anatel como órgão para monitorar e implementar as novas regras previstas no PL 2630 ou, caso o projeto seja reprovado, por outros mecanismos jurídicos – além do uso da Senacon. Quais são os aspectos problemáticos nesse contexto?
João Archegas: São duas abordagens problemáticas. Sobre a questão da Senacon: primeiro, por não haver em lei essa definição. Como isso será feito? Quais instrumentos aplicar para garantir a atuação das big techs de certa maneira e sem violar direitos? Pôde-se ver isso recentemente, no caso das escolas, dos ataques às escolas brasileiras. A Senacon criou, a partir de uma portaria do Ministério da Justiça – não foi a própria Senacon, mas o próprio ministro da Justiça – novas atribuições, como analisar riscos e aplicar o dever de cuidado, hoje inexistente na legislação brasileira. Logo, são conceitos em discussão no âmbito do PL 2630, mas não é possível aplicá-los como obrigação legal às plataformas digitais como uma portaria. O Congresso deveria estipular isso. Usá-la como instrumento de regulação de plataformas digitais gera muita instabilidade – e falta de previsibilidade é tudo que não precisamos hoje no Brasil.
Seria muito melhor amadurecer o quanto antes o que falta ser amadurecido no PL 2630 para aprová-lo e, pelo menos, haver uma moldura comum estável, para a qual seja possível olhar e entender quais são as obrigações e o que será necessário fazer para estar de acordo com as leis brasileiras. Outro ponto: nem tudo sobre esse debate se resolve pelo direito do consumidor. Prova disso foi a aprovação, em 2014, do Marco Civil da Internet. Ele veio para preencher o vácuo deixado por outras legislações no sentido de precisarmos de legislação específica para regular a internet e pensarmos em governança digital. O seu artigo 19 vem nesse sentido: não adianta aplicar regras de responsabilidade civil do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque não funcionam na internet, pois elas geram incentivos errados.
Quanto à Anatel, há um conflito de interesses muito óbvio. O órgão cuida de questões envolvendo, por exemplo, os URL ratings, que consistem nas operadoras de telefonia móvel poderem ofertar pacotes de dados em que não se descontam dados quando o usuário acessa determinados aplicativos. Essa é uma questão debatida há muito tempo e, potencialmente, viola alguns dos princípios basilares do Marco Civil na Internet, como a neutralidade de rede. Colocar a regulação de plataformas digitais nas mãos da Anatel é um potencial conflito de interesses. Como ela resolverá isso? Há também questões envolvendo conhecimento técnico: a Anatel é responsável pela regulação do setor de telecomunicações e tem expertise para isso. Nesse sentido, ela não necessariamente tem expertise para lidar com plataformas digitais, moderação de conteúdo e todas as nuances envolvendo esse universo.
João Archegas destaca o papel que o Marco Civil da Internet pode ter na regulação das atividades das big techs no território brasileiro
A perspectiva exclusivamente comercial de big techs com dados, à revelia do bem comum, mostra que o debate precisa ser muito mais profundo e qualificado?
João Archegas: Sem dúvidas. Essa é a grande questão da nossa geração: como alinhar interesses comerciais e privados das grandes empresas de tecnologia. Elas passaram a exercer papel muito importante na gestão de espaços públicos na prática. Isso porque discutimos política e pautamos o debate público nos espaços digitais controlados por grandes empresas de tecnologia, que são entes privados. O grande desafio é como conciliar, alinhar e equilibrar interesses privados e comerciais de empresas e tecnologia com os interesses públicos. Isso é necessário para proteção do Estado democrático de direito, promoção de valores e princípios constitucionais. Precisamos estabelecer uma relação de corregulação entre essas diferentes esferas. A esfera normativa já se desprendeu da órbita gravitacional do Estado-nação e operam em espaço transnacional.
Um exemplo é o que aconteceu na Austrália, em 2021, e se repetirá no Canadá. O parlamento australiano aprovou regulação exigindo para plataformas remunerarem jornalistas pelo conteúdo produzido por eles e em circulação na rede. A Meta alegou que não haveria mais links de conteúdos jornalísticos na plataforma no país, pois não queria remunerar e por achar que não ganharia dinheiro o suficiente a ponto de valer a pena. Isso forçou a Austrália a voltar à mesa de negociações e pensar em nova solução regulatória ao lado da empresa.
Por mais que o país pudesse “gritar” que foi uma ofensa à soberania nacional e que não poderia acontecer dessa forma, ela viu-se forçada a voltar à mesa de negociações. Idem para repensar a moldura aprovada no parlamento e repensar a moldura aprovada no parlamento. Isso porque essas grandes empresas de tecnologia estão poderosas a ponto de bater de frente com o Estado-nação, um grande país como a Austrália, e forçar uma renegociação.
Archegas destaca o diálogo necessário entre Estado e big techs para determinar as bases de atuação dessas empresas em territórios nacionais
Como o terceiro setor e o ISP podem atuar na defesa de projetos em favor do fortalecimento da democracia e combate à desinformação e discursos de ódio no ambiente online?
João Archegas: O terceiro setor tem papel essencial – talvez, o mais essencial de todos. Trabalho há algum tempo com o termo de constitucionalismo digital, no sentido de esses subsistemas da sociedade global se normatizarem e criarem suas próprias esferas normativas, regras e mecanismos de resolução de disputa que independem do direito estatal, da constituição estatal, são muito específicos da era digital. Trata-se também de subproduto da globalização e da expansão do poder privado – fenômenos vistos pelo menos desde o final do século passado.
Precisamos considerar o seguinte: não é possível traduzir todos os elementos do constitucionalismo moderno para essa nova realidade digital. Um ponto caro para o constitucionalismo estatal é a questão sobre uma comunidade, valores nacionais e uma população conviver dentro de um território onde há aspectos como soberania popular e nacional, exercício do poder político etc. Nesse novo constitucionalismo, para além do Estado, alguns pontos se perdem na tradução. A formação de comunidade é também enfraquecida, pois se trata de bilhões de usuários, a depender da plataforma. Isso porque não compartilham de valores e interesses comuns como eles fazem dentro do Estado-nação, onde essas questões surgem de forma mais orgânica.
Como resultado, essas pessoas acabam desmobilizadas. É muito mais difícil os usuários dentro de uma plataforma se unirem para forçar mudanças para as plataformas atualizarem os seus termos de uso e questões envolvendo moderação de conteúdo. Aí, enfim, entra o papel da sociedade civil organizada, para entender e mapear os problemas e desafios na esfera digital e pressionar por mudanças. Vimos isso nos últimos anos com escândalos como a Cambridge Analytica e os Facebook Papers. Por fim, a atuação organizada e muito forte da sociedade civil levou a mudanças nos padrões dessas empresas e no modo como pautam sua governança interna.
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Como essas medidas podem ser benéficas para a atuação das OSCs propriamente ditas?
João Archegas: O que mais precisamos hoje é de maior comprometimento dessas empresas com pesquisa acadêmica e atuação da sociedade civil organizada. Ou seja, precisamos de acesso a dados. Mas as grandes empresas de tecnologia estão fechando o acesso, muito por preocupação que tem esse efeito negativo quanto às inteligências artificiais generativas. Elas dependem de hiperprocessamento e coleta de dados para o treinamento e o funcionamento ocorrerem da forma adequada. Sendo assim, elas irão atrás dessas informações nas grandes plataformas digitais. Essas plataformas alegam que abrem mão dessas informações, mas outras empresas os processam para agregar valor a elas – as plataformas não recebem nada em troca. Por isso, elas fecham o acesso a dados para isso não acontecer.
Pode até ser uma questão legítima, mas não pode ser uma desculpa para fechar acesso a dados para quem depende deles para fazer ciência e propor soluções regulatórias eficientes com base em análise de dados. Se perdermos isso, perderemos também um dos grandes valores que a sociedade civil organizada pode oferecer para esse debate: propor soluções a partir de análises científicas. Por fim, talvez esse seja o principal ponto de atenção hoje: o movimento para cada vez restringir mais acesso a dados para pesquisas e para o terceiro setor especialmente.
Archegas ressalta que, mesmo com o papel fundamental da regulação das plataformas, é necessário amadurecer o debate para evitar a inclusão de aspectos problemáticos em médio e longo prazos
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.