Quando o jornalista e empreendedor social Tony Marlon, morador do Campo Limpo, bateu na porta de investidores de regiões centrais da cidade para tentar financiar a Escola de Notícias, iniciativa de formação de jovens em comunicação fundada por ele, ouviu que a ideia era muito romântica. “Por mais que a gente tivesse uma lógica de modelo de negócios e fundamentação teórica por trás do projeto, eu tinha dificuldade em entender pra quem eu falava o Paulo Freire e pra quem eu falava o Eike Batista”, lembra. Hackear o ecossistema de negócios de impacto, ainda bastante fechado para iniciativas periféricas, foi um dos desafios enfrentados por Tony em sua trajetória.
Hoje, o empreendedor social toca um novo projeto, a Historiorama, focado no direito à comunicação e sua pluralidade. “Democratizar é ter mais gente falando, inclusive via TVs comunitárias, que são incríveis pois conseguem regionalizar o conteúdo. É importante entender a política internacional? É importante. Mas para mim e muitas outras pessoas, nesse momento é mais importante entender onde tem alimentação orgânica no Campo Limpo. E hoje isso é difícil, pelas redes sociais os algoritmos não deixam. Eu só consigo fazer isso com a comunicação comunitária”, afirma.
Leia na entrevista a seguir como Tony pretende facilitar o entendimento de editais públicos e privados e levar mais informações para pessoas atualmente em um deserto de notícias com seu novo projeto Historiorama, que conta com apoio do Fundo Zona Leste Sustentável, iniciativa criada pela Fundação Tide Setubal.
Como teve início a sua relação com os negócios de impacto social?
Passei minha infância no Projeto Arrastão, que conheci quando me mudei para São Paulo. Comecei a fazer cursos lá em 2001. foi quando soube que existiam ONGs. Em Salinas (Minas Gerais), onde nasci, não se falava disso. Lá dentro, fui entrando nesse universo da comunicação. Passei por todas as etapas do Projeto, fui aluno de diversos cursos, jovem aprendiz, estagiário, coordenador de área, e participei da criação do Núcleo de Comunicação Maré Alta, em 2007.
Sai alguns anos depois, com a vontade de entender por que os projetos sociais não tinham uma lógica de mobilização de recursos. Pensava que deveria ter algum jeito de tocar os projetos sem depender de fundos governamentais e coisas do gênero. Foi aí que fiquei sabendo sobre os negócios sociais, fui pro Geração MudaMundo, uma plataforma de empreendedorismo social juvenil criada pela Ashoka, e a partir disso falei “nossa, é isso! Não vou criar um projeto social, vai ser outra coisa. Algo que faz entregas para o território e mobiliza recursos”. Fiz faculdade, conheci diversos projetos e, nesse meio, fui entendendo que tinha espaço para eu fazer alguma coisa que desenvolvia econômica e socialmente o território, e ao mesmo tempo gerava trabalho e renda para a gente. Em 2012, desenhei a metodologia da Escola de Notícias e, no ano seguinte, botamos no ar a primeira turma. Fiquei na Escola até 2016, que era o tempo que eu havia combinado ficar.
Por que você optou por sair da Escola de Notícias?
Eu acho que a função de um projeto social é acabar. Quando construímos a Escola de Notícias, falei que ficaríamos 3 ou 4 anos, construiríamos um conselho comunitário e poderíamos sair da posição de gestores. quando nos mantemos muito tempo na gestão de um projeto, começamos a achar que o que acreditamos é a verdade, as opiniões ficam meio viciadas. Tanto é que o estatuto da Escola de Notícias diz na segunda cláusula que ela só vai existir até 2024. São dez anos de existência, acompanhados de um plano de metas, justamente para que as pessoas que vão geri-la posteriormente entendam que o compromisso não é continuar existindo, mas erradicar ou minimizar as questões que tínhamos que resolver. Colocar uma data de término é uma forma de criar um senso de urgência na organização. Quando eu saí teve uma eleição. Dos sete dirigentes eleitos pelo conselho, seis são ex-alunos da Escola.
No seu percurso para empreender, quais os maiores desafios que identificou para criar um negócio social na periferia?
Enquanto eu circulava apenas pelo Campo Limpo fazendo articulações, conseguimos sustentar nosso primeiro modelo de negócios, com apoio do edital do Programa Vai e outros recursos públicos. Um dos grandes desafios aconteceu quando sai da região e fui conversar com o restante da cidade. A Escola de Notícias já tinha sido tema da Folha, estávamos entre os finalistas do prêmio Milton Santos, mas, apesar de vários reconhecimentos, os investidores de fora da periferia não acreditavam no projeto. Lembro que um deles falou “Tony, eu acho muito legal o que você está fazendo, mas acho muito romântico”. Isso porque a gente tinha 28 páginas de fundamentação teórica. Isso me pegou bastante.
Acho que o desafio era como traduzir o que a gente estava fazendo para a linguagem desses outros espaços. Comprei livros de negócio, para entender como fazer essa tradução. Por mais que a gente tivesse uma lógica de modelo de negócios e fundamentação teórica por trás do projeto, eu tinha dificuldade em entender pra quem eu falava o Paulo Freire e pra quem eu falava o Eike Batista.
Um outro desafio foi a concentração do recurso nas mãos de algumas pessoas, que dominam o código. A gente às vezes ficava muito feliz por ganhar os recursos de um Vai, de R$ 36 mil, e depois descobria que tem amigos e amigas que captavam R$ 500 mil. Isso pra mim é muito surreal, até hoje. É uma realidade muito diferente. Aos poucos, vi que eu podia montar um projeto que talvez custasse um pouco mais. O desafio é conseguir acessar esses lugares onde poderíamos ter contato com esse tipo de recurso. Porque são grupos muito fechados. Até hoje, quando tenho reuniões, tento levar comigo uma galera que não está ainda nesse circuito. Eu sei como é. Se alguém que está dentro não te colocar, você vai ficar dependendo de recurso público pra sempre.
De onde veio a ideia de criar o Historiorama, sua nova iniciativa?
Pensei que eu tinha disputado a narrativa, quando coordenava a agência de comunicação Maré Alta, e a formação, na Escola de Notícias. Então ficou faltando apenas disputar o veículo, né? Tive a ideia da Historiorama, que tem como proposta trabalhar pelo direito de todos e todas contarem a sua história. É basicamente democratização da comunicação, mas não coloco nestes termos pois muita gente pensa que isso é só “abaixo a Rede Globo”. Mas eu sempre fui distante dessa posição, porque acredito que ao invés de brigar contra a Rede Globo, eu quero brigar para que mais pessoas tenham as suas próprias Redes Globos. Acredito que dá pra ter um monte de gente sendo o Silvio Santos de si mesmo, tendo seus próprios veículos.
Se a população já tem acesso a meios de comunicação na TV aberta e com a internet, qual o papel de democratizar a informação?
O que eu entendo por democratização da comunicação é garantir uma pluralidade de vozes. Quero que mais pessoas não cresçam achando que o Brasil é branco e de olho verde, como é contado pela mídia tradicional. Democratizar é ter mais gente falando, inclusive via TVs comunitárias, que são incríveis pois conseguem regionalizar o conteúdo. É importante entender a política internacional? É importante. Mas para mim e muitas outras pessoas, nesse momento é mais importante entender onde tem alimentação orgânica no Campo Limpo. E hoje isso é difícil, pelas redes sociais os algoritmos não deixam. Eu só consigo fazer isso com a comunicação comunitária.
A nossa leitura é de que hoje a gente tem um deserto de notícias gigantesco. A pesquisa Atlas da Notícia mostra que 35% dos municípios brasileiros não têm mídia própria. Eles cruzam esses dados com os IDHs, e esses lugares são geralmente os com os IDHs mais baixos. Pensei então que esses desertos não existem só no Brasil, territorialmente falando. Existem dentro dos grandes centros urbanos.
Como os projetos da Historiorama dialogam com isso?
A Historiorama tem hoje dois projetos. O primeiro é um podcast chamado Feito Nós, que está com um retorno muito legal entre os articuladores de projetos de cultura e educação nos territórios. No podcast pegamos um edital, público ou privado, convidamos quem o escreveu e sentamos juntos para lermos e traduzirmos o que ele pede. É importante porque nem todo mundo domina o código do que está sendo pedido. Já foram para o ar duas edições. O primeiro, com a Marina Fay da Fundação Affonso Brandão Hennel, foi ouvido mais de 300 vezes. É um produto muito funcional.
O segundo é o Embarque no Direito, um jornal distribuído gratuitamente, atualmente para 10 mil pessoas, focado no público leitor de periferias com mais de 40 anos de idade, que não é contemplado pelas produções comunicativas. Essas pessoas vão trabalhar às cinco da manhã, pois entram no serviço às sete, não conseguiram o direito de entrar às nove. Nesse horário, ainda não tem a distribuição de jornais gratuitos como o Metro ou o Destak. E na volta do trabalho, o ônibus está muito cheio e eles não vão conseguir consumir conteúdo dentro do busão.
No começo, me questionaram muito sobre a decisão de fazer um jornal e não um site. As pessoas falam coisas como “nossa Tony, não faz sentido, tá todo mundo na internet”. Eu respirava fundo e questionava “defina todo mundo”. O consumo de mídia no celular pra esse público é diferente. Eles não acessam Globo.com ou UOL. Isso tem a ver com pacotes de dados, que costumam ser específicos para Facebook, Whatsapp e Instagram, e todos acabam circulando somente ali dentro porque não mexe com a franquia. É um perigo, porque as pessoas acabam acreditado que a internet é o Facebook.
Como você estudou esse público-alvo para criar o jornal?
Ficamos por um tempo indo nos terminais de ônibus bem cedo, às cinco e meia da manhã, e tentando entender esses grupos, pessoas normalmente mais velhas. Temos muitos coletivos produzindo conteúdo, mas quem produz para nossos pais? Não estão dialogando com esse público, que está de alguma maneira apartado dessa discussão. Pautamos todo o jornal para eles. O Embarque no Direito sai mensalmente, e distribuímos em terminais de ônibus e grandes pontos circulação de moradores do Jardim Ângela, Campo Limpo e Capão Redondo. O jornal tem terminado muito rápido, o que prova que sim, tem demanda para isso.
Com a publicação queremos pesquisar, interpretar e traduzir os direitos sociais das periferias. A cada edição a gente escolhe um direito, convida seis meninos e meninas para participar da formação junto com a gente e produzir esses conteúdos. Todo mundo recebe para isso. São jovens que passam por cursos de comunicação da região, e muitas vezes depois disso falam “tá, e agora, o que eu faço?” É com essa galera que falamos, pois queremos gerar renda para eles. E os distribuidores são amigos desses jovens, moram nessa região. Na última edição, de tudo que a gente gastou, 78% foi só para voltar para a mão de moradores da comunidade. Isso nos interessa porque queremos ativar economicamente essa galera produtora de conteúdo da periferia.
Como surgiu a sua parceria com a Fundação Tide Setubal, que apoia o Historiorama por meio do Fundo Zona Leste Sustentável?
A gente se aproximou bastante quando a revista Página 22 fez uma edição especial sobre periferias, e eu e a Neca [Setubal, presidente do conselho da Fundação Tide Setubal] pudemos trocar uma ideia sobre periferias a partir de dois pontos de vista diferentes, um de quem mora e outro de quem apoia o desenvolvimento desse território. A partir dali nos aproximamos bastante porque a Fundação estava ampliando o seu leque de trabalho para além de São Miguel Paulista, tentando falar com outras periferias. Quando contei a ideia de produzir um veículo de comunicação, construímos via Fundo Zona Leste Sustentável essa parceria.
Na construção do projeto foi muito importante a participação do Haroldo Torres, sócio da Din4mo e consultor da Fundação Tide Setubal, e da Greta Salvi, coordenadora do Fundo Zona Leste Sustentável. A gente fez diversos encontros e eles me provocaram muito até eu chegar nesse conceito. Para além do aporte financeiro, para mim o mais incrível foi esse processo de mentoria, que me ajudou a ter mais clareza sobre a fundamentação teórica do que estamos fazendo. Isso impacta na repercussão do projeto, que já está boa, e aumenta as chances de expansão para o futuro.