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Se há um grupo identitarista, é o branco – Entrevista com Lia Vainer Schucman
Lia Vainer Schucman, doutora em Psicologia Social e professora do Departamento de Psicologia da UFSC, fala de branquitude e equidade racial.
Quando se fala em relações étnico-raciais e combate às múltiplas dimensões do racismo, o foco do debate é direcionado para a população negra. Por mais que se ressalte o papel de pessoas brancas tenham como aliadas na luta antirracista, as provocações sobre o tema ficam, nas entrelinhas, como responsabilidade de pessoas, organizações e lideranças negras. Todavia, um aspecto precisa receber ainda mais atenção nesse contexto: o debate sobre branquitude.
Pode-se dizer que branquitude consiste em privilégios simbólicos e materiais associados ao tom da pele. Nesse sentido, ele ajuda a compreender como pessoas brancas ocupam espaços de poder e decisão dentro de sociedades construídas por meio do racismo. Um de seus reflexos consiste no conceito de pacto narcísico da branquitude, criado por Cida Bento, doutora em psicologia e cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert): “um acordo não verbalizado de autopreservação, que atende a interesses de determinados grupos e perpetua o poder de pessoas brancas”.
Para falar sobre branquitude, entrevistamos Lia Vainer Schucman, doutora em Psicologia Social e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autora de Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo e Famílias Interraciais: Tensões Entre Cor e Amor, Lia falou sobre aspectos diversos relativos à branquitude e à luta antirracista. A entrevista abordou também como o ISP pode rever práticas não reproduzi-las.
Confira o diálogo.
Um dos pontos relativos à branquitude condiciona pessoas brancas a não se verem como racializadas, mas sim como o padrão universal. O que é necessário para elas passarem a se ver como pessoas racializadas em uma sociedade multirracial e plural?
Lia Vainer Schucman: Toda a construção da branquitude está relacionada a um lugar de poder no qual se classifica o outro e não a si mesmo. A classificação do outro, que tem a ver com a expansão colonial e nada tem a ver com raça, pois raça biológica não existe, relaciona-se à geopolítica. Há quatro grandes classificações raciais: asiáticos, negros africanos, a América indígena e europeus – os brancos. Essa classificação se deu em uma relação de poder de dominação, no qual o branco se via como modelo universal de humanidade e os outros grupos ora eram desvios, atrasados ou algum grupo que deveria chegar e ficar como brancos. Há na branquitude a ideia central segundo a qual os outros grupos deveriam se transformar para ficar igual.
A branquitude é uma identidade homicida: ela não é um lugar onde cabem muitos mundos. Para haver multiculturalismo e diversidade racial, precisa haver um mundo onde caibam vários mundos. Ela foi consolidada como um conceito de que só cabe o igual a si mesma. A branquitude foi toda forjada em uma noção falsa de superioridade moral, intelectual e estética. É necessário desvencilhar-se disso. Quando se desvencilha da ideia de que desenvolvimento, moral ou forma tecnológica consistem no que europeus fizeram, pode-se pensar em mundo no qual caibam vários mundos.
Antes de destruir a própria ideia do branco, ou colocá-lo como mais uma categoria racial, é necessário destruir a lógica de superioridade branca quanto aos outros grupos. A categoria branco não faz o menor sentido sem o racismo: ela o consolida, pois não se trata de identidade cultural, sendo só uma identidade de dominação. Como uma pessoa do sul da Itália, um dinamarquês ou da Síria chegam ao Brasil no mesmo grupo? Não tem cultura ou linguagem parecidas e não há ancestrais comuns. Ou seja, não há o que consolida uma ideia de identidade cultural.
É correto pensar que políticas de reparação histórica são vistas como identitárias? Essa perspectiva inerente à branquitude retroalimenta a noção de supremacia branca?
Lia Vainer Schucman: A tradição do conceito de identitarismo consiste em um grupo fechado em si mesmo, que distribui poder apenas dentro de si – os interesses só valem dentro dele. Se há um grupo identitarista, é o branco. Ao considerar-se que a branquitude se caracteriza como posição em que pessoas classificadas como brancas são beneficiadas pela estrutura racista de 500 anos de expropriação e espoliação do trabalho, corpo e da própria vida dos outros em uma sociedade com racismo estrutural, a questão central não é só o benefício: esses benefícios são distribuídos apenas no próprio grupo.
Como apenas pessoas brancas ocupam os lugares de poder? Há uma distribuição de poder dentro do próprio grupo – político, econômico e jurídico – que vai se consolidando. Se há algo que é identitarismo, é sobre os brancos, mas há uma projeção de chamar lutas por direitos de identitarismo. Qual é a luta e qual é a demanda dos movimentos negros? Saúde, educação, dignidade e reconhecimento simbólico. Quais são as lutas feministas? Direito à creche, ao aborto, dignidade e à autodecisão. Chamar isso de identitarismo é má-fé.
Lia Vainer Schucman falou sobre diferenças nos níveis de cobrança e de julgamento entre profissionais brancos e negros, para quem os níveis de cobrança são substancialmente mais intensos
Dentro dessa lógica vem à tona também o debate sobre a escolha do próximo ministro ou ministra para o STF e a mobilização para a escolha de uma candidata negra. Isso passa muito mais por fatores como confiança em vez do mérito ou da preparação.
Lia Vainer Schucman: Veja as frases que ouvi sobre a possibilidade de uma ministra negra no STF. Uma frase recorrente é: “não precisamos de uma ministra negra, mas de alguém competente”. Ponto aqui. O que isso significa? Não há mulheres negras competentes? Ao fazer a análise do discurso, isso já está colocado.
A outra frase: “para o STF, não olhamos nem cor, nem gênero”. Estão olhando cor e gênero desde que o STF existe – branco e masculino. Essa é a ideia central da branquitude: quem tem cor é o negro e o indígena, e o branco é o universal. Se não olham para cor e gênero e só há brancos lá, parte-se do pressuposto de que branco não é uma cor e que homem não é gênero. Outra coisa: como o presidente não tem nenhuma pessoa negra de confiança? Ele não convive com negros? Já que é para ser de confiança, por que não há uma mulher negra de confiança dele? Pressupõe-se de que o círculo de convivência é apenas de homens brancos.
Como a história mostra que o Brasil precisa de uma ministra negra no STF?
Parte importante dos relatos de Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo mostrava dimensões diversas na desumanização de pessoas negras. Como essa perspectiva retroalimenta ciclos de negação de direitos e de opressão contra a população negra?
Lia Vainer Schucman: O racismo no qual a sociedade brasileira está inserida cria, por si só, desigualdade de classes. Essas pessoas têm menos direitos, pois estamos em um país onde a ideia neoliberal de que as instituições privadas são melhores. Nega-se à população negra acesso às melhores escolas, hospitais e possibilidades. A própria desigualdade em que negros estão inseridos cria mais racismo – é um círculo vicioso. A própria categoria raça cria o racismo, e o próprio racismo a recria com a noção de esse grupo ser menos apto a estar nos lugares de poder.
Outro dia, falei em uma empresa. A CEO mencionou que, se contratasse negros, [funcionários] teriam de trabalhar mais. Brancos, que na cabeça dela são superiores, precisariam trabalhar mais para cobrir o não trabalho dos negros. Eles falam da população que construiu o país. Não há absolutamente nada no país que não tenha sido construído pela população negra. Veja o nível de competência e de resiliência de uma pessoa que sai do Capão Redondo, pega duas horas de ônibus, trabalha, chega ao trabalho, paga a faculdade à noite, lê no ônibus e passa por batida policial. Aí, uma empresa diz que procura por pessoas com resiliência, mas o que é visto como resiliência é o parâmetro do próprio branco.
Isto não é quadro do Porta dos Fundos: uma empresa me falou que aferiu resiliência pelo fato de a pessoa ter feito intercâmbio na Irlanda e aprendido inglês ainda assim. Mas passar por tudo isso o que falei antes não era visto como resiliência. A régua pela qual se mede é inventada pelos próprios parâmetros brancos, que não conseguem entender a absurda competência da população negra na construção do país.
Lia Vainer Schucman fala sobre a intersecção entre economia e desigualdade sociorracial
Como tirar o debate sobre racismo do campo moral e trazê-lo para o campo estrutural pode ser estratégico? Como pessoas brancas podem agir como aliadas e reconhecer que o debate sobre o racismo é um ponto no qual elas mesmas precisam se ver?
Lia Vainer Schucman: A ideia de que todo humano merece vida digna já seria o suficiente para pessoa ser antirracista. Há uma noção de sub-humanidade dirigida a indígenas e negros. A noção de raça é um divisor da lógica de humanidade e ela própria é construída junto com a categoria raça. Precisamos reconstruir a ideia de humanidade. Uma humanidade construída com base na modernidade, no “penso, logo existo”, e de racionalidade, com ela colocada em pessoas brancas e a emoção, em populações negras, é uma mentira absoluta. Não há nada imanente no branco que fale sobre ele ser racional ou sobre negro ser emocional.
Vê-se mais humanidade ao branco dentro dessa categoria, que é a própria branquitude. Pessoas brancas precisam entender que há uma dívida impagável com a população negra e indígena no Brasil – essa dívida está aumentando todos os dias. Só há uma forma para isso: se a branquitude se caracteriza como um benefício que todos os brancos têm em uma sociedade racista, a questão central é na distribuição desses benefícios. É preciso democratizá-los de forma equânime. É necessário haver redistribuição de recurso radical, principalmente, por quem tem na mão a caneta, para ver aonde vão os recursos. Outro ponto central é reconhecer a construção deste país pela população negra.
Lia Vainer Schucman destacou o histórico brasileiro de reparação a grupos que estiveram à frente de grupos socioeconômicos autores e beneficiados por políticas de desumanização de populações negras
Como o ISP pode desenvolver ações para enfrentar reflexos da branquitude no dia a dia, inclusive aspectos estruturais?
Lia Vainer Schucman: Há, no ISP, um lugar que reproduz a branquitude, no sentido de que esse dinheiro é meu, ele foi construído com o trabalho de minha família, e decidirei aonde vai e quem merece ou deve recebê-lo nessa redistribuição. Há algo muito radical nisso, pois também se reproduz a lógica de que para distribuí-lo, isso ocorre em geral para instituições muito bem organizadas. Esse dinheiro não chega muito na mão de quem mais precisa, pois há um tipo de organização e uma lógica sobre como captar recursos, em que o CNPJ precisa estar organizado, e que seja para uma [organização] já reconhecida, para se fazer propaganda da própria filantropia. Mas não se distribui esse recurso para a população que, muitas vezes, é a que mais precisa.
Saiba mais
+ A pesquisa Periferias e Filantropia – As Barreiras de acesso aos Recursos no Brasil, da Iniciativa Pipa em parceria com o Instituto Nu, apresenta o cenário de organizações atuantes em territórios periféricos no Brasil. De acordo com o levantamento, 95% das organizações encontram dificuldades para acessar financiamentos aos seus projetos. Além disso, 31% relataram ter gerido e obtido menos de R$ 5 mil no intervalo de um ano para manter a operação, ao passo que 14,8% afirmaram não possuir recursos e 24,5%, contado com recurso anual entre R$ 5 mil e R$ 25 mil.
+ Com quatro episódios, a série Caminhos: Trilhas Coletivas pela Equidade Racial visa sensibilizar lideranças e empresas sobre a luta contra o racismo. Por fim, assista a seguir ao episódio O que a Filantropia Faz pela Equidade?, o terceiro da série.
Texto: Amauri Eugênio Jr. / Imagem: Renato Parada