O contexto sociopolítico dos últimos anos mostra, de modo incontestável, que um dos elementos de destaque para a polarização política e a radicalização de forças autocráticas passa pelo fluxo de desinformação nas redes sociais e demais plataformas digitais. Para além do fluxo de conteúdo inautêntico – ou, sem eufemismos, mentiras e materiais tirados de contexto -, a disseminação massiva de materiais relacionados ao desastre ambiental que assola o Rio Grande do Sul mostra que esforços no combate à desinformação são necessários para proteger a democracia e a cidadania ativa.
Desse modo, o fluxo de veiculação de mentiras observado soma-se a eventos que aconteceram nas últimas semanas, como a ocorrência de ataques coordenados contra o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira, mostra que é necessário regular a atuação e o funcionamento das big techs no país. Esse panorama ganha contornos dramáticos ao considerar-se que a instalação de um grupo de trabalho para formular um projeto em substituição ao PL 2630 ainda não foi oficializado.
Para João Archegas, pesquisador sênior de Direito e Tecnologia no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), o debate sobre regulação precisa amadurecer – e ir além de interpretações meramente políticas. E isso vale também, então, para o combate à desinformação. “Considero a regulação de plataformas digitais como urgente e necessária, mas a questão é o próximo passo. A partir do momento em que houver consenso sobre ser necessário regular, a grande questão é como fazê-lo.”
Nessa dinâmica, o desenvolvimento de soluções nesse cenário passa pela atuação conjunta de diversos países para haver mudanças sob a perspectiva de governança digital. “O outro lado, a gente tem que pensar na relação de corregulação, no sentido de o Estado não poder mais atuar dentro de perspectiva regulatória clássica e estabelecer deveres e obrigações, fiscalizar e aplicar sanções’, reforça João Archegas.
Entre razão e emoção
Quando se fala em combate à desinformação, qualquer aspecto relativo à dinâmica dos algoritmos dentro das redes sociais logo vem à tona como tópico central. Não por acaso, aspectos referentes à disponibilização de conteúdos condizentes com interesses mutáveis para cada usuário, assim como o alcance maior de materiais que apelam para fatores emocionais, estão intrinsecamente relacionados à veiculação de publicações de cunho extremista.
A lógica emocional, assim sendo, é um fator preponderante na disseminação de mentiras – e, consequentemente, é necessário considerá-lo quando se fala em combate à desinformação. Magali Cunha. Magali é doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, agência de checagem de fatos voltada à análise de conteúdos veiculados de mídias religiosas e em redes sociais que abordem conteúdos sobre religiões, fala sobre esse aspecto e o pânico moral.
“A desinformação lida muito com o medo e o terror verbal estabelecidos com os discursos. Aí entram o ódio, o medo e o terror causado nas pessoas, especialmente nas famílias, nas pessoas ligadas à religião que têm o cuidado com a família – e com ela como elemento muito caro a essas pessoas -, filhos, juventude e mulher. Há vulnerabilidades historicamente tratadas entre grupos religiosos. Quem produz desinformação sabe afetar nesses elementos vulneráveis”, comenta.
Nesse contexto, Magali Cunha fala sobre o combate à desinformação ir além de fatores essencialmente racionais – logo, deve-se considerar a dimensão sentimental e emocional. “Ao oferecer um conteúdo, é necessário veicular um que respeite o que afeta as pessoas. A linguagem deve ser ao mesmo tempo jornalística e respeitosa com a questão religiosa que perpassa o universo naquele público. É um desafio muito grande para lidar com sentimentos e afetos.”
Liberdade ou estado de natureza?
Outra dimensão que vem à tona quando se fala em combate à desinformação diz respeito à liberdade de expressão. Nesse sentido, tal conceito tem sido alvo de instrumentalização por parte de grupos com aspiração antidemocrática. Isso ocorre para, entre outras coisas, normalizar discursos de ódio contra grupos politicamente minorizados. Idem contra segmentos sociais atuantes em defesa da democracia, além do segmento acadêmico e da imprensa.
Todavia, o uso distorcido do conceito de liberdade de expressão tem sido questionado por grupos demográficos diversos. Isso ocorre, em especial, no que diz respeito à disseminação de discursos de ódio, inclusive em caráter misógino, racista e LGBTIfóbico.
Desse modo, Camila Rocha, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autora do livro Menos Marx, Mais Mises, fala sobre percepções identificadas em pesquisas realizadas com jovens autodeclarados progressistas e conservadores a respeito do tema.
“Pelo o que conversamos com jovens, todas e todos percebem a necessidade de ter esse ambiente que esteja livre de discursos de ódio. Inclusive, se pensarmos em termos de liberdade, é esse tipo de ambiente que fornece maior liberdade para as pessoas – não o contrário. Como uma mulher ou pessoas trans, negras ou gordas, por exemplo, participarão de um espaço em que podem ser atacadas, canceladas ou xingadas? Que liberdade essa pessoa terá?”, pondera.
Por fim, Camila Rocha aponta uma contradição referente ao conceito de liberdade de expressão após grupos antidemocráticos o distorcerem. “À medida em que essas pessoas [de grupos politicamente minorizados] não têm liberdade, as demais pessoas também acabam tendo as liberdades reduzidas. Isso porque é possível pensar que não é possível se expressar a respeito de determinadas coisas porque virão discursos de ódio [à tona]. E isso, enfim, se estenderá a ela.”
Texto: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Sora Shimazaki / Pexels