A produção cultural das periferias sem intermediários
Por Daniel Cerqueira / Foto: Fernanda Nobre Existe um movimento acontecendo em muitas partes do planeta de valorização da literatura produzida por grupos e pessoas que antes estavam à margem da indústria cultural: escritores e escritoras das periferias, negros e negras, mulheres e LGBTQI+ estão conquistando cada vez mais espaço nas feiras, festivais […]
Por Daniel Cerqueira / Foto: Fernanda Nobre
Existe um movimento acontecendo em muitas partes do planeta de valorização da literatura produzida por grupos e pessoas que antes estavam à margem da indústria cultural: escritores e escritoras das periferias, negros e negras, mulheres e LGBTQI+ estão conquistando cada vez mais espaço nas feiras, festivais ou festas de literatura.
Um dos autores que têm furado a bolha eurocêntrica é o angolano Kalaf Epalanga, que esteve presente na abertura do Clipe 2019 (Circuito Literário nas Periferias), realizada em 18 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade. Kalaf, que vive em trânsito entre Lisboa e Berlim, e tem também trajetória de relevância também na área musical, foi integrante do projeto Buraka Som Sistema, que difundiu no início dos anos 2000 para a Europa e para o mundo o kuduro – ritmo angolano influenciado por gêneros diversos, como o afro house, o rap e sons tipicamente africanos.
O autor esteve no Brasil para o lançamento do livro Também os Brancos Sabem Dançar, no qual conta a história do kuduro a partir da sua experiência pessoal com a música, sobre o qual falou durante a sua participação na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). A conversa foi conduzida pelo rapper Eugênio Lima e contou com a presença de, aproximadamente, 140 pessoas.
Para Márcio Black, coordenador de mobilização social e redes da Fundação Tide Setubal e responsável pelo Clipe, “o Kalaf é genial. Ele consegue transitar muito bem entre a literatura consolidada e a literatura das periferias. Ele fala desse lugar, do imigrante africano na Europa e que cola rápido com as identidades periféricas de São Paulo”. De fato, a ligação dos dois traços identitários esteve evidente durante toda a conversa na Biblioteca Mário de Andrade.
Epalanga falou sobre tudo isso, sem deixar de abordar as questões da realidade brasileira, do histórico da população negra por aqui, as suas conquistas e o contexto político atual.
Kalaf Epalanga (à esquerda) e Eugênio Lima (Foto: Fernanda Nobre)
Produzir e resistir
Um dos destaques da fala de Kalaf durante a abertura da Clipe 2019 diz respeito ao papel da música e da dança como forma de resistência cultural dos africanos em Portugal e que pode ser replicado em outras partes do mundo. “A música seja talvez o único lugar onde nós conseguimos resistir, onde a cultura negra conseguiu se manter. Embora seja muito associada a festa, e talvez por isso tenha resistido, para nós, africanos, a música é mais do que isso. Por isso, quando conto a história do kuduro, estou a falar mais do que da música, estou a dizer de um povo que marca presença. O mesmo ocorre com a dança, que também é a nossa resistência. É a nossa maneira de dizer: estou aqui, estou vivo.”
Outros pontos importantes da sua exposição dizem respeito às questões da indústria cultural. O escritor lembra que, até a popularização da internet, havia uma barreira para fazer chegar nas periferias o que elas mesmas produziam. Esta barreira, chamada na música de produtor ou editor na literatura, é desmontada pelo acesso às tecnologias. “Hoje você não precisa de um ‘salvador’ que vai dizer pro mundo que aquilo é ou não é bom. Com a internet e o fácil acesso à nossa produção cultural, nós mesmos temos esse poder e devemos utilizá-lo com mais frequência.”
Além de ter feito uma série de provocações ao público, para estimular quem compareceu ao evento repensar paradigmas sobre o status quo do cenário cultural, Kalaf afirmou, entre outras coisas, que a cultura deve voltar para as mãos dos jovens – “prefiro que esteja aqui um menino de 20 anos, fazendo as perguntas erradas, mas é assim como ele vai aprender. Não se deixa o jovem errar, mas ele tem de errar mesmo.”
Para finalizar, o escritor destacou a apropriação de manifestações culturais produzidas nas periferias só acontece porque os próprios cidadãos que lá habitam não dão o devido valor ao que eles mesmos fazem. “Só se apropriam [do que produzimos] quando permitimos que se apropriem. Quando nós próprios não consumimos e não gostamos do que fazemos, alguém vem e diz que isso é bom. A minha postura é sempre fazer a nossa ‘parada’ e consumi-la, para que outros consumam, mas do nosso jeito e como a gente quer que seja consumido.”
Saiba mais sobre o Clipe
Neste sentido, ações como o Clipe vão ao encontro de suas provocações. O projeto originou-se com o objetivo de fortalecer manifestações culturais periféricas, potencializando coletivos, calendários e eventos que já existiam distribuídos pela cidade. Acreditando no poder transformador da cultura e, em especial, da leitura e da produção literária, a Fundação ampliou suas ações – antes realizadas em São Miguel Paulista com o Festival do Livro e da Literatura – para cinco territórios da cidade, espalhados pela zona noroeste, norte, sul, leste e centro. O Circuito Literário conta com quatro eixos: formação, patrocínio, compartilhamento de redes e eventos autorais. É, pois, um projeto facilitador do acesso e da difusão da cultura periférica entre seus pares, sem intermediários.
Confira e acompanhe a programação completa do Clipe nas redes sociais da Fundação Tide Setubal e no site fundacaotidesetubal.org.br.