Segundo o artigo 6° da Constituição Federal de 1988, a moradia é listada como um direito social. Ainda, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), todo ser humano tem direito a um padrão de vida que lhe permita garantir para si próprio e à sua família aspectos básicos, dentre os quais a habitação faz parte.
Apesar disso, a realidade aponta que há um longo caminho para torná-la um direito efetivo. De acordo com relatórios da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional estimado para o país em 2019 foi de quase 5,9 milhões de domicílios, ao passo que cerca de 25 milhões de residências apresentaram inadequações em pelo menos um tipo de serviço de infraestrutura. Combater e mudar esta realidade são os nortes do trabalho desenvolvido por Luiz Kohara, doutor em Arquitetura e Urbanismo e pesquisador de questões urbanas.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Kohara, que é também membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, falou sobre os diversos reflexos causados pelo déficit habitacional e pelas condições inadequadas em residências na qualidade de vida de pessoas sob tais condições, assim como no desenvolvimento, inclusive escolar, de crianças. Kohara fala também a respeito de caminhos possíveis para aumentar – e universalizar – o acesso a moradias dignas para quem não vive em construções com esse perfil.
Confira a seguir a entrevista.
De modo geral, como o conceito de moradia digna visa resgatar essa premissa e mostrar que a habitação é um direito humano?
Luiz Kohara: Apesar de a habitação estar na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, até hoje ela não é efetivada, pelo menos para a grande maioria da população que mora de forma indigna ou inadequada. Um dos problemas é ela ser vista como mercadoria. Mesmo as políticas públicas de habitação a tratam desta forma e não como um serviço público fundamental. Se a moradia é um direito social e fundamental e que equivale aos direitos humanos, a política deveria priorizar todas as pessoas, independentemente da condição de renda.
Para ter acesso à saúde e à educação, você não depende da renda. A habitação deveria também ser dessa forma para ser efetivada a todos que precisam. Os programas de habitação deveriam ser serviços públicos de habitação social. Há um grande problema: historicamente, todas as políticas públicas, com raras exceções, como a locação social e alguns outros programas que tenham subsídio, excluem a população que mais precisa. Por exemplo, 85% do déficit habitacional abrange pessoas com até três salários mínimos – mas, nesse percentual, quase a totalidade tem até dois salários mínimos. Além disso, faltam programas habitacionais suficientes para enfrentar o déficit habitacional, que está acumulado há muito tempo.
Para além de ações do poder público como o aluguel social, quais podem ser os caminhos possíveis para ampliar o acesso ao direito à habitação?
Luiz Kohara: É importante destacar que a sociedade brasileira sem acesso à moradia é bastante heterogênea. São necessários muitos tipos de programas para atender a essa realidade. Por exemplo, quando se fala em população em situação de rua, deve haver programas específicos – a realidade da população de rua é muito heterogênea. Precisa haver um leque de tipos de programa: podem ser por acesso por propriedade, locação social, programas de serviço público de moradia social e outros tipos.
Não dá para fazer um único programa massificador achando que o problema da habitação será solucionado, até porque há também o problema de inadequação habitacional – uma parcela grande no Brasil, de cerca de 25 milhões de famílias, vive em moradias inadequadas. É necessário pensar em várias alternativas e em várias modalidades de programas para enfrentar-se um conjunto de segmentos sociais sem acesso à moradia digna.
O aumento nos casos de despejo, em particular após a crise causada pela pandemia, mostrou que a perspectiva habitacional é um fator entre vários que impactam a dignidade de cidadãs/os. Como o poder público pode atuar, com a sociedade civil ou só, para trazer esses aspectos à tona e criar iniciativas multidisciplinares?
Luiz Kohara: O problema da moradia é decorrente de várias questões que agravam o problema. Por exemplo, é fundamental haver iniciativas da sociedade, principalmente dos grupos organizados, para organizar soluções. Há muitas experiências no Brasil e em São Paulo de produção de moradias de autogestão, que têm conseguido mostrar como é possível produzir habitações de qualidade a custo menor e com localizações melhores.
Há também experiências de outras iniciativas de defesa do direito à moradia e que estão buscando alternativas para a sociedade defender os direitos humanos quanto à moradia. Digo isso porque houve ações de despejo mesmo com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo os gestores e o judiciário ainda não compreendem a moradia como um direito humano fundamental – inclusive, acompanhamos situações de famílias que foram para rua despejadas nessa situação. Dentro desse cenário, uma discussão importante quando se fala de direito à moradia é a segurança na posse.
Ainda que haja alternativas de produção, é necessário também pensarmos em alternativas que garantam às pessoas terem a posse em uma situação na qual possam não estar totalmente legalizadas – há essa insegurança. Mesmo a ocupação de imóveis que não cumprem função social, que já fugiam da obrigação, deve ser protegida para garantir que as pessoas possam permanecer lá. Considero fundamental todo o debate com a sociedade, para podermos pensar em alternativas e saídas para esse problema.
Pode-se ver que grande parte das gestões públicas tem ficado subordinada nos programas de habitação aos interesses do mercado imobiliário. Por exemplo, as PPPs que saem como propostas de habitação de atendimento à população popular, em geral, atendem muito mais a interesses do setor imobiliário em detrimento ao interesse da população. Mesmo no programa Minha Casa, Minha Vida, há produções de habitações em áreas sem infraestrutura. Mesmo que o abrigo tenha boa qualidade, se a localização não é boa, as pessoas continuam com o problema da moradia.
É correto pensar na perspectiva sociorracial e de gênero ao falarmos sobre habitação e moradia digna? Por quê?
Luiz Kohara: É fundamental pensarmos na moradia digna de forma articulada com a questão racial e de gênero. Em todas as pesquisas e estudos, quando vemos que a população que mora mal, cerca de 70% ou mais são de população negra. O problema da moradia está muito relacionado ao racismo estrutural. Vemos que desde 1850, quando foi criada a Lei de Terras, o interesse era impedir que a população negra acessasse moradia e terra – isso tem sido reproduzido. A população que é totalmente excluída do direito à moradia é negra.
A questão de gênero também é fundamental quanto à moradia, porque, historicamente no Brasil, quem é responsável pela moradia ou, quando tem qualquer problema de uma separação, ou quem assume toda a responsabilidade da moradia são as mulheres. Isso não dá para ser dissociado – é visível. Vemos que o problema da moradia atinge, em sua maioria, a população negra. É fundamental fazermos a discussão da questão da moradia com a questão racial e de gênero.
Um ponto que chamou a atenção em estudos feitos por você é como a condição da moradia impacta a vida escolar de crianças.
Luiz Kohara: Desenvolvi uma pesquisa na Baixada do Glicério, na EMEF Duque de Caxias, estudando quatro salas de crianças da quarta série – a metade morava em cortiços. Pude observar que uma criança que morava em cortiço tinha quatro vezes mais chances de ser reprovada do que outras crianças com os familiares de renda bem próxima moradoras de quitinetes ou em casas também.
Outra coisa que vi: todas as crianças reprovadas moravam em quartos de cortiços sem janelas e também, por exemplo, não tinham guarda-roupas ou lugares para guardar os materiais escolares. Todas as precariedades das moradias repercutiam no desempenho escolar. Pude ver que, na verdade, as condições de precariedade da moradia são fatores fundamentais para a reprodução da pobreza e da desigualdade, pois muitas das crianças, à medida em que eram reprovadas, evadiam das escolas. Quando fiz a pesquisa – terminei em 2009 -, a evasão desta escola estava em índices elevadíssimos, muito maiores do que as cidades mais pobres do Brasil. Isso porque essas crianças, pelas condições de moradias, não conseguiam ter regularidade na escola.
Pesquisei também crianças que haviam deixado cortiços e moravam em conjunto habitacional atendido pela prefeitura, para avaliar o que havia mudado nas vidas delas à medida em que haviam melhorado de moradia. Uma das meninas, para quem perguntei o que havia mudado na vida dela em termos escolares, disse que quando morava no cortiço, por todas as condições, achava que era “burrinha”. Há três anos fui visitar a família: a menina estava no último ano de Direito e trabalhando em um escritório de advocacia – lembrei para ela sobre a pergunta que ela havia respondido alguns anos antes. Ela se lembrou e disse que quando morava em um cortiço, o sentimento era de que a pessoa não era muito cidadã e a perspectiva de futuro ficava muito misturada com as condições precárias. Ela também falou sobre amigas que ficaram no cortiço e logo tiveram filhos e pararam de estudar.
Há muitos exemplos que mostram como a precariedade das condições de moradia são determinantes para as vidas das pessoas. Por isso, é fundamental reconhecermos que a moradia é um direito humano. Não dá para dissociar como se fosse o direito ao acesso a uma mercadoria. É muito diferente, pois a moradia é a base estruturante para a inserção social das crianças e de todas as pessoas.
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Entrevista: Amauri Eugênio Jr.