“Se o jovem não tem educação midiática e senso crítico, ele não consegue diferenciar fato de opinião.” Esta fala de Patrícia Blanco, presidente executiva do Instituto Palavra Aberta, organização atuante na promoção e defesa da liberdade de expressão, acesso à informação e educação midiática, ajuda a compreender o panorama preocupante sobre desordem informacional, veiculação de mentiras como se fossem verdades e perda de credibilidade da imprensa.
De acordo com a TIC Kids Online Brasil 2022, pesquisa do Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil, 43% de jovens não sabem checar se determinada informação é verdadeira ou falsa. Ainda segundo a mesma pesquisa, 93% das pessoas de 9 a 17 anos acessam a internet no país. Quanto à população adulta, uma pesquisa do Instituto Reuters mostrou que 48% de pessoas brasileiras ouvidas no estudo afirmaram não confiar no trabalho da imprensa.
Diante desse quadro, falar sobre educação midiática é obrigatório. De acordo com o Educamídia, programa do Instituto Palavra Aberta, esse conceito abrange um “conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos”. A educação midiática faz parte também da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A sua aplicação ocorre ao integrá-la à formação de professoras e professores para a implementação de projetos para preparar estudantes na compreensão e interpretação de conteúdos midiáticos.
Desse modo, o Instituto Palavra Aberta conta com 17 termos de cooperação firmados com Secretarias de Educação de unidades federativas e municípios do Brasil. Ainda, segundo a organização, 190 mil docentes e 3,2 milhões de alunas e alunos foram alcançados por meio de ações relativas à educação midiática.
Nesta entrevista, Patrícia Blanco falou sobre o trabalho e os desafios quando se fala em educação midiática. O diálogo passou também caminhos possíveis na construção de ambiente informacional pautado por fatos e sobre o papel do ISP nesse conceito.
Campanhas difamatórias contra órgãos e profissionais de imprensa colocaram a reputação do jornalismo em xeque. Ainda, a pesquisa Juventudes e Primeiro Voto mostra que jovens se informam via perfis de entretenimento, celebridades e influenciadores. Defender a democracia passa por fortalecer a relação dos jovens com a imprensa?
Patrícia Blanco: Entendemos e defendemos que liberdade de imprensa e valorização do jornalismo estão intrinsecamente ligados à sustentabilidade e ao fortalecimento da democracia. Sem uma imprensa forte, independente, autônoma e isenta, dentro dos limites do próprio jornalismo, não conseguiremos sustentar sistemas democráticos. Pôde-se ver nos últimos anos uma campanha maciça para descredibilizar veículos de comunicação e a imprensa como um todo. O jornalista passou a ser visto como um inimigo. Ou seja, um profissional que pensa diferente de mim e traz informações que me afetam ou não me agradam.
O fato é: o distanciamento do público mais jovem de veículos de comunicação, a falta de conhecimento sobre o funcionamento da imprensa, e da importância do jornalismo para a manutenção da democracia, colocam em risco a própria democracia. Precisamos atrair e trazer de volta a pessoa jovem que se informa via plataformas e redes sociais e deixou de consumir informações vindas do jornalismo, produzidas por profissionais ou por veículos de comunicação estabelecidos. O distanciamento do público jovem em relação ao consumo de matérias produzidas por jornalistas profissionais, que seguem critérios, métodos estabelecidos, com ética e responsabilidade, está cada vez maior.
Como podemos pensar na democratização midiática proporcionada pelo acesso a smartphones, por exemplo, e no papel desempenhado por pessoas influenciadoras?
Patrícia Blanco: Pensemos no ambiente informacional. Houve uma grande revolução no consumo de informação, seja de qualquer formato ou assunto. Se antes havia poucas fontes de informação, no sentido de poucos veículos, a entrada da tecnologia possibilitou a criação de novos canais e da comunicação em tempo real. Isso independe do investimento em grandes sistemas de transmissão ao vivo.
Antes, para se fazer uma transmissão ao vivo, era necessário um caminhão com uma antena. Hoje, a transmissão ao vivo é feita pela palma da mão, com dispositivo móvel. Qualquer celular faz transmissão ao vivo. Passamos de um ambiente com poucas vozes, chamado de unidirecional, no qual o veículo já entregava para o cidadão uma curadoria e informações já trabalhadas, para um ambiente multidirecional, onde todos falam para todos, surgem novos veículos, canais e vozes. Idem figuras novas no ambiente informacional: celebridades e influenciadores digitais.
Isso gera desordem informacional e resulta em dificuldade muito maior de identificar conteúdos e diferenciar fato de opinião. Idem sobre alguém que se coloca como autoridade naquele assunto sem ser de fato mas, por ter algum reconhecimento e algum saber sobre determinado assunto, se vê obrigado a falar e dar opiniões sobre tudo. Muitas vezes, a opinião dele sobre esportes é boa, mas sobre vacina, por exemplo, não – ele não tem autoridade para isso. O público jovem influencia-se pelas ideias dessa figura, na qual reputa confiança e tem relação quase de parentesco com esse influenciador.
Patrícia Blanco fala sobre a crise no modelo adotado por canais jornalísticos hegemônicos e o surgimento de novos formatos, com destaque para veículos independentes
A atuação de influenciadores pode passar a contribuir com a educação midiática? Como eles podem ser aliados no processo para se recuperar a credibilidade informacional?
Patrícia Blanco: Vejo a diversidade e a profusão de novos canais e veículos como fundamentais. Eles têm um papel de extrema importância, principalmente pelos veículos de comunicação de grande porte terem de optar por cobrir o macro. Cobrem-se hoje macropolítica e macroeconomia, mas não se desce para o local. O noticiário dos grandes jornais consiste no que acontece em Brasília e nos grandes estados. Essa opção editorial distanciou o público leitor do dia a dia. Esse público precisa do veículo de comunicação como prestador de serviços, sentir-se representado e ver-se retratado por ele.
Esses novos veículos trazem também a cobertura sobre questões de gênero, raça e ambientais relativas às comunidades em que estão inseridas. Essa, acho, é a riqueza do momento atual. A diversidade, pluralidade e quantidade de novos veículos que surgiram por conta da possibilidade de baixo investimento proporcionado pela tecnologia permitem haver cobertura muito mais ampla de questões antes invisibilizadas pela grande imprensa. Esse é, pois, o lado muito positivo desse novo sistema informacional com o qual estamos.
Em paralelo, a profusão de influenciadores, que são pessoas com uma determinada característica, mas se tornam celebridades com milhares, milhões de seguidores, é um fator a ser considerado. Se o jovem não tiver educação midiática e senso crítico para discernir o que é dito e seguir um influenciador com opiniões distorcidas sobre determinados assuntos, ele não conseguirá diferenciar fato de opinião e acreditará em tudo o que o for veiculado. Não importa se houver uma rede de veículos de comunicação, de jornalistas e pessoas apurando a informação – se essa determinada pessoa fala, ela a seguirá. Aí entra, então, o risco de influenciadores pregando questões discriminatórias, antivacina, relacionadas ao negacionismo e outros vieses que geram e propiciam desinformação.
Patrícia Blanco fala a respeito do papel de influenciadoras e influenciadores no atual contexto comunicacional
Como é possível trazer a lógica da liberdade de expressão para a perspectiva coletiva e que diga respeito à conscientização democrática?
Patrícia Blanco: Quando se fala de liberdade de expressão, ela é muito mais do que ser a liberdade de poder falar. Trata-se também do direito do outro falar, inclusive o que não gostamos. Esse é o ponto sobre a liberdade de expressão do qual às vezes nos esquecemos: achamos ser apenas nossa e para falarmos o que quisermos. Quando o outro fala algo diferente do que acreditamos, queremos censurá-lo e coagi-lo. Com isso, pratica-se o cancelamento virtual e a censura-se quem pensa diferente de nós de diversas maneiras. Logo, se houver um post político dentro de um ambiente de polarização, por exemplo, e falo sobre não concordar com uma decisão do governo de plantão, a guerra travada nos comentários é tão absurda e virulenta que afeta pessoas mais sensíveis a esse tipo de comentário.
Assim sendo, ao trazer para o ambiente no qual pessoas não entendem o papel do jornalista, há jornalistas, principalmente mulheres, sendo atacadas por publicar matérias contra ou em favor de determinados governos ou autoridades. Há casos como os de Miriam Leitão, Patrícia Campos Mello, Vera Magalhães. Lembro de nomes de jornalistas que sofreram assédio virtual absurdo – e sofrem até hoje. Então, o nível de ataques em qualquer coisa que façam, escrevam e publiquem é absurdo. Isso é liberdade de expressão? Não, pois isso se trata de discordar concorda com determinado ponto – o ângulo de uma matéria no caso. Outra coisa é dizer que a pessoa merece morrer – isso não é liberdade de expressão.
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Qual papel o terceiro setor pode exercer para apoiar a educação midiática e fortalecer a confiança social na atuação de jornalistas e de veículos?
Patrícia Blanco: Primeiro, o terceiro setor tem tido uma função de extrema relevância no Brasil. Ainda mais no ambiente pós-pandemia. Isso porque as entidades do terceiro setor chegam onde o governo não alcança e consegue fazer algo que, além de ser um braço executivo de política pública, que muitas vezes o órgão executivo não consegue fazer, logo é também um impulsionador da política pública.
Trata-se, então, de entidades que estão na ponta, direto no atendimento de determinados grupos, e forçam o governo a ter política pública mais ampla. Digo isso, pois a educação midiática, embora já tivesse grande respaldo acadêmico no Brasil de muitos anos, não chegava na prática. Graças à atuação de Palavra Aberta, Educamídia e outras entidades que cobraram a implantação de política pública de educação midiática, hoje há um órgão federal cujo objetivo é estruturar a estratégia brasileira nesse sentido. O terceiro setor impulsionou e, agora, faz com que a educação midiática chegue.
Nesse sentido, entidades e fundações com atuação direta com o público podem ajudar muito. Se temos a educação midiática dentro da escola formal, já instituída na Base Nacional Comum Curricular, com espaço dentro dos currículos dos ensinos fundamental e médio, e se olharmos para a população fora da escola, há um espaço de atuação brutal. São questões como: no caso de quem lida com comunidades, é possível fazer cursos de combate à desinformação e de valorização do entendimento da imprensa, para levar o conteúdo da educação midiática para públicos que não estão na escola.
Nesse sentido, essa função do terceiro setor é de extrema relevância em qualquer momento. Ao pensarmos no papel de entidades que lidam com pessoas em situação de vulnerabilidade e combate à desinformação na área de saúde, há então um caminho imenso e superimportante da atuação dessas entidades para levar a educação midiática e ajudar esse cidadão a entender melhor o conteúdo em pontos como saúde e vacinação e tantas outras questões. Considero, então, como fundamental e de extrema importância o terceiro setor engajar-se nesse movimento.
Patrícia Blanco destaca o desafio atual para incentivar jovens a acreditar no jornalismo profissional, assim como o papel que a educação midiática pode exercer nesse contexto
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Instituto Palavra Aberta